Uma seleção com alguns dos mais belos versos
do aniversariante do dia.
Tem o Chico
político. O Chico romântico. O Chico cronista. O Chico trovador. E uma multidão
de Chicos e Beatrizes e Bárbarbas e Genis e tantos personagens sem nome que não
cabem nas caixas de CDs em homenagem a um dos maiores, se não o maior, nomes da
música popular em todos os tempos – aquele que, segundo Caetano Veloso, artista
do mesmo quilate, nos fez ver “melhor e com mais calma o quanto já tínhamos
Noel, Haroldo Barbosa, Caymmi, Wilson Batista, Ary, Sinhô, Herivelto”. Cada um
tem o Chico que merece, e o verso favorito para costurar entradas e saídas para
a fossa, o riso, o suspiro. (Nas palavras de Maria Bethânia, ele produz emoções
só em pensar).
Ao longo do
dia, o dia em que Chico Buarque completa 70 anos, passei horas removendo
gavetas de memórias afetivas para montar uma lista dos meus dez Chicos
favoritos – parei nos primeiros quinze, e desisti. Tantas palavras de domínio
tão exato alçaram Chico Buarque a um posto que só nomes como Machado de Assis,
Graciliano, Rosa, Clarice, Drummond, Caetano e alguns outros poucos conseguiram
alcançar. De tal forma que é inevitável dizer: seríamos mais brutos, mais crus
e mais desonestos com tudo o que dá dentro da gente e não devia se estes versos
não existissem. A eles:
“Como,
se na desordem do armário embutido meu paletó enlaça o teu vestido e o meu
sapato ainda pisa no teu”.
Não houve
até hoje romancista, pintor, escultor ou cineasta brasileiro que tenha
conseguido criar uma imagem lírica tão poderosa quanto a despedida inconformada
de “Eu Te Amo”: O verso compete apenas com outro trecho da mesma música: “se na
bagunça do teu coração, meu sangue errou de veia e se perdeu."
“Morreu
na contramão atrapalhando o tráfego”
O fim
trágico do operário de “Construção” é o fim trágico de todos nós, os que saem
de casa com um mundo às costas sem sequer imaginar que este mundo pode estar em
sua última volta – uma última volta transponível para as outras voltas
indiferentes de quem vê o outro, e as outras vidas, como um estorvo, ou um saco
flácido a atrapalhar o trânsito, o público e o sábado.
“A
gente estancou de repente ou foi o mundo então que cresceu?”
O resumo
elegante do estado de espírito de tempos autoritários, quando a desesperança
anula, aniquila, encolhe e esmaga quem investe contra a “Roda Viva”. É uma
dúvida perene: o que fizemos com o que fizeram de nós? Estancamos?
“Não
se afobe, não, que nada é pra já. Amores serão sempre amáveis”
A letra de
“Futuros Amantes” corre em dois sentidos. É o ansiolítico aos que, na ânsia de
viver, esquecem de respirar, e a marola de quem recolhe as certezas e lança ao
mar as esperanças em troca de tempo. Usada diariamente por maiores de 10 e
menores de 100 anos.
“E
tantas águas rolaram, quantos homens me amaram bem mais e melhor que você”
A melodia
calma e serena de “Olhos nos olhos” é o tiro de calibre 22 na presunção
masculina: penetra sem alarde, mas estilhaça todos os órgãos internos,
inclusive o orgulho, sem lágrimas nem pena.
“E
que me aperta o peito e me faz confessar. O que não tem mais jeito de dissimular.
E que nem é direito ninguém recusar. E que me faz mendigo, me faz implorar. O
que não tem medida, nem nunca terá. O que não tem remédio, nem nunca terá. O
que não tem receita”
Trecho de “O
que Será (À Flor da Pele)”. Porque nem todo sentimento é puro, nem toda
adoração é plena, nem toda reação do corpo tem nome.
“Toda noite ela diz pra eu não me afastar.
Meia-noite ela jura eterno amor. E me aperta pra eu quase sufocar. E me morde
com a boca de pavor”.
Nem o
“Cotidiano” mais comum é imune ao sublime, ainda que tentemos dirimir todas as
dúvidas e ansiedades entre hortelãs e feijões. O beijo final é o único beijo
possível: se o beijo não tem pavor não é beijo; é ensaio.
“A
saudade dói latejada. É assim como uma fisgada no membro que já perdi”.
Antes de
Chico Buarque a saudade, palavra exclusiva da Língua Portuguesa, possuía um
significado quase insosso: era a presença de uma ausência. Com “Pedaço de mim”
virou uma dor, mas uma dor no lugar certo: um membro que se perdeu. A imagem do
revés de um parto não poderia ser mais exata da presença dessa ausência.
“Cada
paralelepípedo da velha cidade essa noite vai se arrepiar”.
Já tentou
usar a palavra “paralelepípedo” em alguma ocasião? Nem tente: paralelepípedos
não são para iniciantes. Trecho inesquecível de “Vai passar”, o hino da pá de
cal sobre a página mais infeliz da nossa história.
“Você
não gosta de mim, mas sua filha gosta”.
“Jorge
Maravilha”, conta a lenda, era endereçada ao general Geisel, cuja filha era fã
de suas músicas. Um petardo em forma de sarcasmo e um recado: o novo sempre
vence.
“A
dor da gente não sai no jornal”
Um hino
contra a frieza da “Notícia de Jornal”, incapaz de abarcar a grandeza das
pequenas tragédias humanas.
“Hoje
eu vou sambar na pista, você vai de galeria. Quero que você me assista na mais
fina companhia. Se você sentir saudade, por favor, não dê na vista: bate palma
com vontade, faz de conta que é turista”
Hino de
qualquer Carnaval, “Quem te viu quem te vê” é um acerto de contas de quem
ficou, uma espécie de eu-lírico de “Olhos nos Olhos” às avessas: o conflito
entre a essência e a afetação é escancarado por quem brincava de princesa,
acostumou na fantasia e já não se reconhece ao ver a sua origem, o morro,
desfilar à sua frente.
“Seus
dois olhos vão se encontrar no infinito”
Em “Tanto
Amar”, um ode ao absurdo: o infinito é algum ponto entre um olho a fitar e
outro a boiar. É preciso visão para encontrar beleza entre um olho e outro,
algo só possível a quem ama e, de tanto amar, faz com que ela, e ele, acreditem
no próprio amor. A moça feia podia se debruçar na janela sem medo de errar:
dessa vez a banda tocava pra ela.
“Lá
faz primavera pá. Cá estou doente. Manda urgentemente algum cheirinho de
alecrim”.
Versão
original de “Tanto Mar”. No ano em que a ditadura portuguesa desmoronou, a
brasileira vivia seu auge. Levaria mais dez anos para se desfazer, até que se
desfez. Do outro lado do Atlântico, a Revolução dos Cravos era uma esperança –
doce e efêmera, como o cheiro do alecrim.
“Nós
aprendemos palavras duras, como dizer ‘perdi’”
Porque,
entre “Tantas Palavras”, final feliz é para os fracos.
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