Falta pouco mais de uma semana para Luciano*, de 23 anos, deixar a clínica onde está se tratando da dependência de crack, álcool e cocaína. Nessa reta final, ele se concentra para encarar novamente as ruas, onde encontrará um bar em cada esquina, cigarros sempre à mão e os colegas que seguem consumindo drogas. Tem diante de si o desafio de evitar frustrações e conflitos, "gatilhos" que o fizeram voltar para as drogas depois da primeira internação, há mais de um ano. "O seu corpo fica limpo, mas a sua mente vai se lembrar da droga para sempre. Um vacilo é o bastante para você ter uma recaída", diz.
Luciano está em tratamento há dois meses no Serviço de Atenção Integral ao Dependente (SAID), clínica pública gerida pela Secretaria Municipal de Saúde e pelo Hospital Samaritano, em Heliópolis, na Zona Sul de São Paulo. O local recebe, prioritariamente, pacientes provenientes da Cracolândia durante a Operação Centro Legal, que começou em 3 de janeiro.
O rapaz procurou ajuda num posto de saúde por conta própria. Estava há três dias sem comer, dormir ou tomar banho. Em um fim de semana, gastou todo o salário bebendo e fumando crack. Luciano esperou por duas horas para falar com o médico e mais duas para ser levado até a clínica. "Por pouco não desisti".
A primeira vez que fumou crack foi aos 18 anos, após um período de uso intenso de cocaína. "A farinha já não fazia efeito", diz, referindo-se à cocaína. "Nesse dia eu fumei umas 10 pedras." Seu corpo pequeno, apesar de forte, não aguentou tanta droga, e Luciano teve um princípio de overdose.
Sessões - Nas atividades que duram todo o dia, os pacientes da clínica – homens, mulheres e adolescentes – fazem sessões nas quais, pouco a pouco, tentam entender as razões que os levaram à dependência. Quase 100% deles chegaram ali por causa do crack. Enquanto pintam uma caixinha, fazem um colar de miçangas ou criam uma tela, eles soltam pequenas pistas sobre seus problemas de convivência, a saudade da família e os momentos de raiva.
Foi durante uma dessas sessões que, na semana passada, Luciano decidiu que ligaria para o padrasto, com quem não falava há mais de cinco meses – e motivo pelo qual saiu da casa da família, no interior de São Paulo. "Foi o passo mais importante que eu dei no meu tratamento", afirma. Os conflitos com o padrasto eram a desculpa que usava para se drogar.
A educação física diária é o momento em que Luciano, ex-jogador de futsal, mais disfruta na sua grade de atividades. Na quadra, assume o papel de capitão do time e se entrega ao jogo. Mas os momentos que para ele realmente fazem diferença são aqueles em que, nas palavras dele, "trabalha a cabeça".
Na clínica, cada um é acompanhado por um terapeuta, chamado de "manejador". “É como a nossa mãe aqui dentro”, define Luciano. São eles que conversam com os pacientes nos momentos de agressividade, angústia ou vontade de desistir. Na mesma sala onde Luciano dá entrevista aconteceram seus momentos de desabafo com Carol, sua manejadora. "Molhei muito o papel dessa mesa. No primeiro mês eu chorei demais".
No início, os remédios amenizaram os sintomas da abstinência. Depois, a fissura foi contornada com passeios intermináveis pela área da clínica e artesando - dobraduras, muitas dobraduras. "Cansei de tanto fazer pato de papel".
Comunicação - “Pai, afasta de mim a biqueira. Pai, afasta de mim a cocaine. Pois na quebrada escorre sangue”. Os versos do rapper Criolo - uma versão de Cálice, um dos maiores sucessos de Chico Buarque - são o tema do grupo de poesia. A tarefa é escrever sobre o que sentiram ao ouvir as palavras que resumem muito daquilo que querem deixar para trás.
Enquanto alguns parecem que nunca mais vão parar de escrever, outros ficam imóveis diante do papel em branco. De repente, um dos rapazes se levanta com cara de choro. “Vou descer, professora”. A terapeuta pede para que ele se sente e conte o que está acontecendo. “Estou preocupado. Penso o tempo todo em me matar”. Ele é convencido a ficar. A comunicação está entre as habilidades mais trabalhadas nos grupos. “Se fosse uns dias atrás eu não estaria falando com você”, afirma Luciano.
Pelo menos duas vezes por semana há visita. Nesses dias Luciano fica no seu quarto, apenas com a companhia das moças bonitas dos pôsteres colados na parede. "Minha família não vem porque mora longe. Fica complicado." A esposa o deixou depois da sua primeira recaída, e a filha, de quatro anos, não vê desde agosto do ano passado. O irmão mais velho também é usuário de crack e esteve internado. "Ele aguentou só um mês. Agora diz que parou. Tomara".
O maior desafio para quem encara o tratamento é levá-lo até o final. Qualquer detalhe é motivo para desistir. Na terceira semana, mais lúcido, Luciano pensou em ir embora: a desistência de um colega de quarto quase o derrubou.
“Era meu melhor amigo. Um dia soube que ele tinha brigado e ido embora e desabei”. O confidente de Luciano passou a ser, então, seu caderno azul - o diário que muitos dos pacientes, principalmente os homens, relutam em manter. "Nesse caderninho tem coisas que ninguém sabe. Só eu e ele. Tinha dias que as pessoas perguntavam se eu estava bem e dizia que sim, mas por dentro estava estourando. Aí escrevia no caderninho e ficava mais calmo".
Despedida - No quarto em frente, um jovem alto, forte e bonito chama a atenção. Maurício* hoje está bem diferente daquele rapaz sujo e extremamente magro que entrou na clínica por ordem judicial há três meses. "No começo foi muito difícil porque ele não queria estar aqui", lembra uma enfermeira. Ela separa todas as cartas e o diário que Maurício escreveu durante o tratamento, que ele levará para casa.
Antes de sair de braços dados com a mãe, Maurício se despede dos amigos. “Daqui a pouco sou eu”, diz Lucas ao dar um abraço no colega.
*Para preservar a identidade dos pacientes foram adotados nomes fictícios