Por: Julia
Garcia
Um microfone
na mão e opiniões e verdades a serem divididas. Soa familiar? A descrição traz
à mente nomes do gênero musical rap – rhythm and poetry, literalmente, ritmo e
poesia –, representado no Brasil por nomes como Racionais MCs, Emicida, Marcelo
D2 e Sabotage. Porém, a poesia entoada com um microfone, que teve origem em
batalhas entre os artistas, não é mais exclusividade do rap.
Estamos
falando da poesia slam, ou slam poetry, como é chamada em inglês. Essa história
começa em 1984, numa escola de Chicago, no estado americano de Illinois; lá,
Marc Smith deu início ao que crê-se ter sido o primeiro campeonato de poesias
ao microfone, julgado pelo público – que dava notas a cada poeta – e decidido
através do confronto indireto entre os participantes. Aos poucos, a iniciativa
se espalharia pelo país e, nos anos 90, a diversos países da América, que
começaram a adotar o modo de expressão. Também conhecido como spoken word, ou
palavra falada, o gênero ganhou força com a aceitação de adolescentes e poetas
independentes, que viram nessa forma de fazer literatura um campo maior de
possibilidades de inovação e arte.
É difícil
traduzir o termo; slam refere-se a um grande barulho, como o causado por uma
porta que bate com o vento forte. Dessa forma, podemos nos referir ao
campeonato como uma batalha de poesias agitadas, fortes. Em países de língua
francesa e espanhola, idiomas em que poderíamos nos basear para arriscar uma
adaptação, traduzem apenas o termo poetry, mantendo o slam, provavelmente pelo
sentido onomatopeico da palavra. É uma boa solução: a poesia slam não é
declamada e cada poeta imprime ao seu texto cadências, ritmos e leituras
próprios, que, sem sua voz, seriam decididos pelo leitor. É um poema que
necessariamente terá ruído, barulho, vida própria – nada parecido com uma
leitura silenciosa e calma, normalmente associada ao gênero poético.
Se a
juventude apropriou-se das competições e causou a transição para um novo gênero
de poesia, não é à toa: com características do rap, influências de diversos
estilos musicais (que podem servir de pano de fundo para os poemas) e uma
possibilidade nova, sem regras, de expressão, onde o que vale é expor suas ideias
e sentimentos de forma original e pungente, a poesia slam é ao mesmo tempo uma
válvula de escape para esse período da vida famoso pelas contradições e dúvidas
e um caminho novo para a arte, que parece ainda não ter sido plenamente
descoberto – ou seja, ainda precisa ser explorado. Os poemas precisam ser
próprios, esta é a única regra indisputável, que não varia em competição alguma
do mundo; tudo o mais é autônomo. Não é por menos que Andrio Candido, poeta
slammer brasileiro, declarou, numa apresentação em São Paulo, que “a poesia pra
mim é um recurso pra botar os meus demônios pra fora”. A catarse é uma das mais
facilmente reconhecíveis características do texto literário. Na poesia, é a
mais atraente e marcante.
LIBERDADE E LITERATURA
A produção
nacional de poesia slam existe e não é pequena, mas sofre de pouca divulgação.
Grupos são organizados e podem ser encontrados por todo o país, mas é
necessário procurar. No YouTube, quando digitamos poesia slam na busca, a
maioria dos resultados são em espanhol, além de alguns vídeos em inglês com
legendas.
A própria
natureza da poesia slam, no entanto, soluciona o problema: essa forma de fazer
poemas e ventilá-los, às vezes com música, quase sempre tendo apenas a voz como
recurso, é atraente para os jovens, e assim pode ser facilmente trazida para a
na sala de aula. Os alunos já conhecem o rap, ainda que possam não apreciá-lo
musicalmente, e assim já têm uma ponte com a poesia slam. Com a exibição de
vídeos e exemplos – talvez até um poema de autoria própria lido para a classe,
por que não? –, professores de literatura podem conquistar a atenção dos
estudantes e estimulálos à produção própria, reproduzindo inclusive o sistema
da competição por chaves.
A literatura
e o protesto há séculos andam de mãos dadas, mas a presença da juventude nessa
união é muitas vezes ignorada; a recente notoriedade da poesia slam – que
chegou a ser tema de um reality show na rede americana HBO – não apenas nos faz
repensar o gênero poético como um todo, mas também evidencia quem pode
escrever. Para ser um poeta slam, basta um poema de autoria própria, um público
e um microfone; a produção literária passa a ser acessível e atraente. Se
devidamente guiada por um professor, é um caminho para, de uma só vez,
trabalhar a redação dos alunos, compreensão poética e até mesmo questões
sociais, sempre presentes na cultura slam. O aspecto competitivo pode ser
introduzido mais tarde, depois que os estudantes se sentirem confortáveis com a
exposição, mas muitas vezes a ideia de disputar com os colegas torna qualquer
atividade mais estimulante – algo que pode ser usado a favor da matéria.
A poesia
slam é uma excelente forma de mostrar aos alunos que o gênero poético é muito
mais do que rimas e palavras de amor, que a literatura é ferramenta de
expressão e que a escrita é democrática, e qualquer um pode valer-se da catarse
e do poder da poesia para contar sua história e soltar seus demônios. Não seria
surpreendente se os alunos, após serem devidamente apresentados ao gênero,
aproveitassem para conhecer poetas tradicionais e vissem, assim, que a
literatura tem muito mais som e barulho do que eles esperavam.
*Julia Garcia é editora das
revistas CONHECIMENTO PRÁTICO LITERATURA e CONHECIMENTO PRÁTICO LÍNGUA
PORTUGUESA.
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