O trio Secos
& Molhados vendeu 500 mil discos em seis meses, lotou o Maracanãzinho e
entrou para a história como um dos mais complexos trabalhos musicais da MPB
Como contar
a sua própria história, se um terço dela se recusa a participar da narrativa? É
mais ou menos frente a esse dilema que se encontra hoje em dia um dos mais
influentes grupos da música pop brasileira (e provavelmente mundial): os “Secos
& Molhados”. Há quase quatro décadas, desde o fim do grupo, dois de seus
três integrantes (Ney Matogrosso e Gerson Conrad) não conversam mais com o
terceiro elemento, o compositor, violonista e cantor João Ricardo.
Ocorre que
Gerson Conrad resolveu contar sua história em uma fotobiografia, “Meteórico
Fenômeno - Memórias de um ex-Secos & Molhados”. Por intermédio da sua
editora, Conrad pediu autorização a João Ricardo para publicar as fotos dos
três, mas João Ricardo negou.
“A minha
imagem colada à dele? De jeito nenhum! Seria uma estupidez, há 39 anos não nos
relacionamos”, afirmou João Ricardo. “Como o livro tem conotações comerciais, e
inclusive é usado para me atacar, por que eu autorizaria?”. O resultado da
negativa foi um recurso no mínimo bizarro: por meio de cortes, Photoshop ou
outros recursos, João Ricardo virou um fantasma no livro. Ele é mencionado
(inclusive na letra de uma música inédita, “Direto Recado”), mas não há imagens
dos três no seu auge. É mais ou menos como se Paul McCartney tivesse vetado a
reprodução de sua imagem nos seus anos de Beatles, e os outros o recortassem
das fotos.
“Uma pena
João, por vaidade ou pouca espiritualidade, ter vetado o uso de imagem dele.
Para mim, é uma atitude individualista que desrespeita o grande número de fãs
que nos cultua”, lamentou Gerson Conrad.
Ambos eram
muito amigos. Conheceram-se na Alameda Ribeirão Preto, no bairro da Bela Vista,
quando ainda eram garotos, tocavam violão e jogavam pingue-pongue. Curioso é
que Conrad, apesar do imbróglio com João Ricardo, defende que se peça
autorização prévia a qualquer biografado para que se escreva um livro sobre
ele. “Acho coerente que, seja lá quem escreva uma biografia sobre algum
artista, solicite no mínimo uma autorização. Assim como procedi com Ney e João
Ricardo”, afirmou.
“Tenho
acompanhado as manifestações de Chico, Gil entre outros, sobre essa questão.
Minha opinião não difere muito de seus contra-argumentos. João, por exemplo,
negou a autorização de imagem, e nem por isso desisti de publicar minha obra.
Sempre haverá recursos éticos a serem adotados ou escolhidos para esses casos.”
O caso da
fotobiografia de Gerson Conrad pode não ser da mesma natureza da restrição que
motiva o debate sobre as biografias não autorizadas, mas é ilustrativo da
distorção que a autorização prévia pode causar. “Certamente João Ricardo
assimilou erroneamente a conotação literária ‘não importa a intenção do autor,
o que importa é a obra’, julgando-se a própria obra”, alfineta Gerson Conrad no
livro.
João Ricardo
não quer nem saber o que o colega escreve no livro. Diz que Conrad é uma pessoa
“totalmente desimportante” e não quer polemizar. “Nem é um livro, na verdade.
Parece que é mais uma revista. Para ser honesto, não tenho interesse (em ler)”,
afirmou. “É a visão dele, é a versão dele. Eu sou totalmente a favor da
liberação das biografias. Não há nada que explique que uma pessoa não possa
falar de você, que é um artista, se expõe. Nos Estados Unidos, há milhares de
biografias falando mal dos ídolos do rock. Mas o direito de imagem é outra
coisa. Os dois saíram do grupo me detonando. Não faço restrições a que falem o
que quiserem, mas, se você procurar bem, vai achar uma entrevista deles falando
cobras e lagartos de mim quando saíram do grupo, em 1974. Só me falta agora me
virem com essa: ‘Posso usar sua imagem para ganhar um troco?’”, disparou.
A versão que
Conrad dá para o fim dos “Secos & Molhados” tem um nome simples: dinheiro.
“João Ricardo nos pressionou para que aceitássemos seu pai como nosso
empresário. Mil promessas foram feitas e, no final, quando entramos em nosso
escritório, fomos tratados como simples empregados e não como donos do
negócio”, disse Ney Matogrosso em 13 de agosto de 1974. Ney reclamava que,
desde que o pai de João Ricardo assumira o leme da banda, nunca mais tinha
visto a cor do dinheiro, chegando até a pedir um adiantamento à gravadora
Continental.
Nesta
quinta-feira, 28, Gerson Conrad lança e autografa o livro na Livraria da Vila
da Alameda Lorena. É dele a música feita para o poema de Vinicius de Moraes,
Rosa de Hiroshima, uma das canções mais conhecidas do grupo.
O FENÔMENO DA MÚSICA
“De que
forma esses três rapazes puderam, em apenas seis meses, vender 500 mil discos,
lotar teatros e clubes em São Paulo e Rio e ginásios e conchas acústicas em
Porto Alegre e Salvador? Como foi possível encher o Maracanãzinho, deixando de
lado de fora uma multidão capaz de lotar outros dois Maracanãzinhos? De que
maneira eles conseguem simultaneamente rodopiar na vitrola do industrial que
toma sol no Guarujá e obter a bênção dos dramaturgos de vanguarda? Arrancar
gritos da gordinha que viajou durante 17 noites seguidas de Nilópolis para o
Teatro Tereza Rachel e, ao mesmo tempo, ser aplaudidos por médicos, bancários,
avós, filhos e netos?”.
O texto no
Jornal da Tarde, no dia 6 de abril de 1974, mostrava assombro com a abrangência
e a complexidade do fenômeno “Secos & Molhados”. Pouca coisa, dados os
recortes de imprensa reunidos no livro “Meteórico Fenômeno”, tinha sido tão
original e arrebatador na música pop brasileira até então.
A
fotobiografia traz poucas novidades sobre a banda. Conrad conta que eles eram
assediados por multinacionais concorrentes para se separarem, com ofertas
assombrosas. Fala que o grupo era “careta”, não curtia drogas, e que um baseado
coletivo quase pôs a perder um show em Santo André (SP).
Um show em
Brasília teve a energia elétrica cortada a pedido da sogra do Ministro das
Minas e Energias, presente ao show. A sogra ficou escandalizada com o peito nu
e o rebolado de Ney Matogrosso. E Conrad revela que a sigla SPPS Produções
Artísticas Ltda, a empresa da banda, significava “Sua Puta Porca Suja”.
Gerson
Conrad e João Ricardo (compositor e cérebro musical do grupo) foram
apresentados a Ney por Luli, cantora da
dupla Luli e Lucinha, que conheceram no clube underground Kurtisso Negro.
Ela contou
de “um rapaz que era ator e dono de uma voz belíssima” que morava no Rio de
Janeiro. “No final de outubro de 1970, desembarcamos, João e eu, na casa de
Luli, no Morro de Santa Tereza. Lá, conhecemos Ney Matogrosso e em pouco tempo
sabíamos, sem sombra de dúvidas, que Ney era o intérprete que convidaríamos”.
Ney chegou a
São Paulo em novembro de 1971, de mala e cuia. Naquele mesmo ano gravaram a
música “Voo”, composição de João Ricardo, para uma montagem teatral de Antunes
Filho - seu primeiro disco sairia em 1973, 40 anos atrás.
O make-up causou furor. “Na época, já havia um sentimento diferente.
Havia o New York Dolls, o David Bowie, o Alice Cooper Mas a nossa necessidade
de pintar os rostos não era só estética, era essencial. Era o momento do rock
progressivo, e nós fazíamos canções. Nosso cantor tinha a voz fina. Vimos a
necessidade de nos apresentarmos de maneira diferente, não éramos uma banda no
sentido convencional”, lembra João Ricardo. “Ninguém agora pode imaginar o que
foram aqueles 20 anos de censura, quando a gente podia ser preso por dizer uma
palavra”, diz a cantora Luli, que é a autora de um dos maiores sucessos do
grupo, “O Vira”. “O público entrava em êxtase quando ouvia coisas como ‘O
Patrão Nosso de Cada Dia’ ou ‘Tem Gente com Fome’, numa embriaguez de
liberdade”, lembra a cantora.
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