quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

EX-GARÇOM QUE VIROU SEBISTA LITERÁRIO EM UM DOS BAIRROS MAIS VIOLENTOS


Meu objetivo não é só ganhar dinheiro, mas criar um espaço para quem gosta de ler e não tinha onde comprar livros

Por: Conrado Carlos

Vejo a programação da festa de Nossa Senhora da Conceição na contracapa do Fala Mãe Luiza, jornalzinho publicado desde 1998 pelo centro sócio pastoral com o mesmo nome da Imaculada, e percebo que o lema deste ano está em sintonia com os cerca de vinte mil habitantes do segundo morro mais conhecido de Natal. Nos dez dias de evento, apenas no encerramento, previsto para o próximo domingo (08), a frase Paz Sim, Violência, Não ficou de fora das missas celebradas por padres e diáconos.

Também leio o editorial escrito por padre Robério Camilo, que deveria circular pelos gabinetes que fecham a porta para aquele pedaço de chão tão pequeno e de fácil acesso, colado ao bairro mais nobre da capital. Ele estimula a pergunta: Por que a polícia não acaba de vez com o sofrimento daquela gente? Importamos o pop baiano e ignoramos ações efetivas de segurança pública.

“Mãe Luiza não está falando, está gritando [...] nossa sociedade está doente”, escreveu padre Robério. Homicídios, estupros, brigas, ameaças, todo tipo de agressão física e mental sufoca a vida de quem habita aquele lugar transformado em algo grotesco, bizarro (como um quadro de Francis Bacon), distorcido na paisagem do cantão Tirol/Petrópolis. Pois foi ali, em meio a tiroteios e a frequente presença do carro-defunto do Itep, que Jorge Palhares resolveu apostar no contraponto à degradação social. Dono de um sebo literário na av. João XXIII, a principal de Mãe Luiza, esquina com a rua Florestal, ele aponta livros para as vítimas da chaga urbana e abre um sorriso que costuma durar todo o expediente (inclusive domingos e feriados, até às 11h). O nome escolhido para o estabelecimento é dos mais adequados à realidade circundante: O Alquimista. Sua história já foi apresentada por tevês e jornais locais, e até por um blog alemão, mas é tão boa que resolvemos contá-la novamente.

Jorge tem 33 anos e trabalhava como garçom até 2009. Sua carteira profissional registra passagens pelo Imirá Plaza Hotel e pela padaria Pão & Companhia. Nos dois empregos, vendia e emprestava livros para colegas, que apontavam talento para negociar com a mercadoria do saber. Anos antes, caminhando distraído pela praia do Meio, ele tinha sido abordado por um casal de argentinos desesperados com o esquecimento do trajeto até a hospedaria onde estavam. A presteza em levá-los ao destino almejado foi recompensada com um presente: o livro O Alquimista, de Paulo Coelho. Daí em diante, despertou para a leitura feito uma criança numa loja de brinquedos e alimentou o sonho de ter um comércio que envolvesse a paixão recém-adquirida. “Sempre quis trabalhar com o que gosto, mas ouvia muita palavra desanimadora. Diziam: ‘Aqui ninguém lê’ [Em Mãe Luiza]. No início me tratavam como louco”.

O pedido de demissão do hotel foi apoiado pelo chefe.  Ele começou em paradas de ônibus de Mãe Luiza com duas mini prateleiras de fabricação própria e a disposição típica dos sonhadores persistentes. Até que a vizinha Elisabete Andrade cedeu um ponto na avenida João XXIII. Com um capital de R$1 mil e a ajuda de amigos, como os sebistas Antonio Lisboa e Vera Torres, donos dos sebos Lisboa e Cata-Livros, respectivamente, que doaram e emprestaram livros e estantes, fundou o sebo literário. Desde então, três endereços foram ocupados, todos no mesmo logradouro. Solteiro, parte de um quarteto de irmãos, Jorge virou referência no bairro. “Ontem mesmo eu dei uma entrevista para uns universitários”, fala ao mostrar cinquenta vinis enviados da Alemanha, através de uma parceria entre ONGs estrangeiras e nativas que atuam na área. Dos quatro anos e sete meses de existência do sebo, as finanças começaram a melhorar em 2013. “Passei a viver só disso”.

“Abrir um sebo aqui em Mãe Luiza foi intencional. Meu objetivo não é só ganhar dinheiro, mas criar um espaço para quem gosta de ler e não tinha um ponto de encontro ou onde comprar livros. Oitenta por cento dos meus clientes moram aqui. A maioria procura por livros de autoajuda, evangélicos ou espíritas”. Jorge vende uma média de dez livros por dia e revela uma cliente especial. “Tem uma menina que não gostava de ler nada, mas depois que abri o sebo ela começou a fazer uma coleção de gibis. Hoje ela tem mais de 120 revistas e vem aqui direto”. Um de seus projetos é montar um centro cultural com livraria, biblioteca, sala de jogos e eventos. “Para as pessoas passarem o dia nele. Só que eu precisava de uma casa e, por enquanto, não tenho condições para isso”.


Quem compra livro com Jorge ganha chocolate. Ele também mostra uma pasta preta com um cadastro de clientes especiais, para os quais libera um real de crédito a cada dez consumidos. “E o livro, chegou?”, diz um deles na calçada, já no final da entrevista. “É assim. Aqui eu vendo livro, dou informação e até conselho. É o que mais gosto de fazer, conversar com as pessoas”. Leitor de O Homem Que Calculava, de Malba Tahan, de O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint Exupéry e da Bíblia Sagrada, Jorge refutou opiniões contrárias, que indicavam uma lan house e um barzinho como melhor investimento, para virar uma espécie de embaixador cultural em uma das áreas mais abandonadas da Cidade do Sol. Na exatidão do matemático persa Beremiz, personagem central da narrativa de Tahan (Jorge mantém um clube de xadrez), o sebista bem-aventurado encontrou seu caminho. “Mesmo com dificuldade, eu estou aí”.

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