Meu objetivo
não é só ganhar dinheiro, mas criar um espaço para quem gosta de ler e não
tinha onde comprar livros
Por: Conrado
Carlos
Em: Jornal de Hoje
Vejo a
programação da festa de Nossa Senhora da Conceição na contracapa do Fala Mãe
Luiza, jornalzinho publicado desde 1998 pelo centro sócio pastoral com o mesmo
nome da Imaculada, e percebo que o lema deste ano está em sintonia com os cerca
de vinte mil habitantes do segundo morro mais conhecido de Natal. Nos dez dias
de evento, apenas no encerramento, previsto para o próximo domingo (08), a
frase Paz Sim, Violência, Não ficou de fora das missas celebradas por padres e
diáconos.
Também leio
o editorial escrito por padre Robério Camilo, que deveria circular pelos
gabinetes que fecham a porta para aquele pedaço de chão tão pequeno e de fácil
acesso, colado ao bairro mais nobre da capital. Ele estimula a pergunta: Por
que a polícia não acaba de vez com o sofrimento daquela gente? Importamos o pop
baiano e ignoramos ações efetivas de segurança pública.
“Mãe Luiza
não está falando, está gritando [...] nossa sociedade está doente”, escreveu
padre Robério. Homicídios, estupros, brigas, ameaças, todo tipo de agressão
física e mental sufoca a vida de quem habita aquele lugar transformado em algo
grotesco, bizarro (como um quadro de Francis Bacon), distorcido na paisagem do
cantão Tirol/Petrópolis. Pois foi ali, em meio a tiroteios e a frequente
presença do carro-defunto do Itep, que Jorge Palhares resolveu apostar no
contraponto à degradação social. Dono de um sebo literário na av. João XXIII, a
principal de Mãe Luiza, esquina com a rua Florestal, ele aponta livros para as
vítimas da chaga urbana e abre um sorriso que costuma durar todo o expediente
(inclusive domingos e feriados, até às 11h). O nome escolhido para o
estabelecimento é dos mais adequados à realidade circundante: O Alquimista. Sua
história já foi apresentada por tevês e jornais locais, e até por um blog
alemão, mas é tão boa que resolvemos contá-la novamente.
Jorge tem 33
anos e trabalhava como garçom até 2009. Sua carteira profissional registra
passagens pelo Imirá Plaza Hotel e pela padaria Pão & Companhia. Nos dois
empregos, vendia e emprestava livros para colegas, que apontavam talento para
negociar com a mercadoria do saber. Anos antes, caminhando distraído pela praia
do Meio, ele tinha sido abordado por um casal de argentinos desesperados com o
esquecimento do trajeto até a hospedaria onde estavam. A presteza em levá-los
ao destino almejado foi recompensada com um presente: o livro O Alquimista, de
Paulo Coelho. Daí em diante, despertou para a leitura feito uma criança numa
loja de brinquedos e alimentou o sonho de ter um comércio que envolvesse a
paixão recém-adquirida. “Sempre quis trabalhar com o que gosto, mas ouvia muita
palavra desanimadora. Diziam: ‘Aqui ninguém lê’ [Em Mãe Luiza]. No início me
tratavam como louco”.
O pedido de
demissão do hotel foi apoiado pelo chefe.
Ele começou em paradas de ônibus de Mãe Luiza com duas mini prateleiras
de fabricação própria e a disposição típica dos sonhadores persistentes. Até
que a vizinha Elisabete Andrade cedeu um ponto na avenida João XXIII. Com um
capital de R$1 mil e a ajuda de amigos, como os sebistas Antonio Lisboa e Vera
Torres, donos dos sebos Lisboa e Cata-Livros, respectivamente, que doaram e
emprestaram livros e estantes, fundou o sebo literário. Desde então, três
endereços foram ocupados, todos no mesmo logradouro. Solteiro, parte de um
quarteto de irmãos, Jorge virou referência no bairro. “Ontem mesmo eu dei uma
entrevista para uns universitários”, fala ao mostrar cinquenta vinis enviados
da Alemanha, através de uma parceria entre ONGs estrangeiras e nativas que atuam
na área. Dos quatro anos e sete meses de existência do sebo, as finanças
começaram a melhorar em 2013. “Passei a viver só disso”.
“Abrir um
sebo aqui em Mãe Luiza foi intencional. Meu objetivo não é só ganhar dinheiro,
mas criar um espaço para quem gosta de ler e não tinha um ponto de encontro ou
onde comprar livros. Oitenta por cento dos meus clientes moram aqui. A maioria
procura por livros de autoajuda, evangélicos ou espíritas”. Jorge vende uma
média de dez livros por dia e revela uma cliente especial. “Tem uma menina que
não gostava de ler nada, mas depois que abri o sebo ela começou a fazer uma
coleção de gibis. Hoje ela tem mais de 120 revistas e vem aqui direto”. Um de
seus projetos é montar um centro cultural com livraria, biblioteca, sala de jogos
e eventos. “Para as pessoas passarem o dia nele. Só que eu precisava de uma
casa e, por enquanto, não tenho condições para isso”.
Quem compra
livro com Jorge ganha chocolate. Ele também mostra uma pasta preta com um
cadastro de clientes especiais, para os quais libera um real de crédito a cada
dez consumidos. “E o livro, chegou?”, diz um deles na calçada, já no final da
entrevista. “É assim. Aqui eu vendo livro, dou informação e até conselho. É o
que mais gosto de fazer, conversar com as pessoas”. Leitor de O Homem Que
Calculava, de Malba Tahan, de O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint Exupéry e
da Bíblia Sagrada, Jorge refutou opiniões contrárias, que indicavam uma lan
house e um barzinho como melhor investimento, para virar uma espécie de
embaixador cultural em uma das áreas mais abandonadas da Cidade do Sol. Na
exatidão do matemático persa Beremiz, personagem central da narrativa de Tahan
(Jorge mantém um clube de xadrez), o sebista bem-aventurado encontrou seu
caminho. “Mesmo com dificuldade, eu estou aí”.
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