segunda-feira, 12 de março de 2012

A RAINHA NEGRA QUE TRAFICAVA ESCRAVOS



TOMISLAV R. FEMENICK [ Autor do livro "Os Escravos: Da Escravidão antiga à escravidão moderna"  ]

Lucro não tem pátria nem cor. A história do comercio de escravos negros é um exemplo e não é completa se não se abordar a figura quase mítica de uma filha de escrava, princesa e, depois, a rainha Nzinga (Dona Ana de Sousa, Ngola Ana Nzinga Mbande, Nzingha, Ginga, Jinga, Zinga, Mbandi Ngola Kiluanji), ou simplesmente a Rainha Jinga, do reino de Ndungo (ou Ngola), território hoje integrante da República de Angola.

Em 1622, juntamente com o rei seu irmão, obteve uma trégua com os portugueses. Dizendo-se convertida ao cristianismo, deixou-se batizar, recebendo o nome Ana de Souza, e concordou em entregar aos traficantes os escravos fugitivos, além de garantir a continuidade do comércio negreiro. A partir daí Nzinga, ainda princesa, passou a pregar a conciliação entre africanos e lusos e instalou uma corte para si na região de Cambo Camana, perto da fronteira norte de Angola. A morte do rei, em 1623 (a mando de Nzinga), foi provincial acontecimento que abriu o caminho para a ascensão da rainha Jinga e para a retomada da luta contra os portugueses, acompanhada por uma "ad hoc" abjuração do cristianismo. 

Entretanto, antes lutar contra os lusos, Jinga em duas ocasiões presenteou ao governador português com escravos. Na primeira vez, com 400 cativos e 150 vacas; na segunda com mais doze escravos. Entre 1630 e 1635, sob o seu comando foi formada uma coligação entre s chefes tribais, sob a denominação Matamba Ndongo, cujo exército fustigou e atacou os contingentes militares e as feitorias colonialistas por várias vezes, de várias formas. 

Quando, entre 1641 e 1648, os holandeses se apossaram totalmente de Angola, a rainha Jinga se aliou aos novos invasores. Aqui se evidencia um fato controverso sobre sua personalidade e comportamento, por vezes apresentada como libertária pelos movimentos de defesa dos povos africanos: a rainha negra possuía escravos, negros e africanos, e quase sempre demonstrou, com palavras e atos, o seu interesse pelo comércio negreiro, do qual participara e obtinha lucros. Tanto é assim que um dos interesses que a levou a fazer aliança com os holandeses foi que estes reconhecessem o seu monopólio sobre o tráfico negreiro e lhes pagassem preços mais altos que os portugueses, pelos escravos por ela fornecidos. O que a ela não interessa era a presença de colonizadores em suas terras, exercendo o poder político, se sobrepondo ao seu poder.

Com a retomada de Angola pelas forças portuguesas vindas do Brasil, a rainha Jinga procurou fazer as pazes com os antigos inimigos. As negociações foram iniciadas em 1654 e duraram três anos. O resultado foi uma verdadeira capitulação de uma provecta senhora. As cláusulas do acordo, entre outras coisas, estabelecia que ela voltaria à religião católica que devolveria cerca de 200 escravos que tinham procurado refúgio em seu território e que os portugueses teriam direito de comerciar livremente, sem impedimentos, em seus domínios. A Rainha Jinga morreu em 1663, aos 81 anos. Em 1671 o antigo reino de Ndongo passou a ter o nome de Reino Português de Angola.

Segundo relatos da época, escritos por missionários, colonos portugueses e viajantes europeus, Jinga ainda princesa instalou em Mutamba "um reino de luxúria e perversidades" [...], assume a "chefia da sociedade guerreira até então comandada por homens. Jinga vai assumir completamente as funções masculinas, criando um harém de rapazes transformados em mulheres, até em o seu vestir [...]. Seguindo os ritos iniciatórios e os costumes dos jagas, Jinga praticava a antropofagia e infanticídios". Essas afirmações não são comprovadas.

Jinga, como rainha, e seu comportamento como mulher dominadora de homens, antropófaga e infanticida (?), foi tema de diversos livros editados na Europa nos séculos XVII, XVIII e XIX. Em 1687 em Bolonha, na Itália, e em Leipzig, cidade do leste da Alemanha Central, na Saxônia; no ano seguinte, a "Biblioteca Universal de História", publicação protestante holandesa, lhe dedica 38 páginas; em 1680, houve uma publicação francesa; em 1694, uma outra alemã, na cidade de Munique; em 1732, foi editada em Paris a "Relação Histórica da Etiópia Ocidental", com várias páginas lhe dando destaque; em 1792, o poeta português Bocage a usou de forma depreciativa para detratar seus desafetos, aos quais classificava de filhos de Jinga; em 1795, o marques de Sade publicou a peça teatral "A Filosofia da Alcova", onde colocou a rainha africana ao lado das mulheres tiranas e libidinosas; em 1822-1830, foi lançada na Alemanha a obra "Filosofia da História", baseada em transcrições de aulas ministradas por Hegel, onde o filósofo alemão cita exemplos de costumes e leis africanas que propagavam o terror, em um Estado governado por mulheres, provavelmente referindo-se ao reinado Jinga. No Brasil, a tradição popular alterna-se em apresentar a rainha Jinga como exemplo do mal ou como guerreira que combateu o colonialismo.

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