Fidelidade,
só aos próprios desejos. Assim defende o psicanalista e escritor italiano na
entrevista. Para ele, ao contrário do que se pensa, os homens são traídos tanto
quanto traem, mas dizem “eu te amo” mais facilmente.
O
psicanalista, psicoterapeuta e escritor italiano Contardo Calligaris falou
sobre amor, casamento, desejo, fidelidade, homens e mulheres. Ele acaba de
lançar o livro “Todos os reis estão nus” (editora Três Estrelas), reunião de
artigos publicados nos últimos anos, organizado por Rafael Coriello.
“A poltrona
vermelha teoricamente é a minha”, diz ele, ao nos apontar as alternativas: uma
poltrona de couro marrom e um divã de veludo também marrom. É nesta sala
cercada de livros – alguns ele mesmo escreveu – que o psicanalista ouve as
inquietações de 60 a 70 pessoas por semana. Multiplique-se isso aos quase 40
anos de clínica que ele tem na conta – começou a atender pacientes em Paris, em
1975 – e imagine a experiência adquirida em comportamento humano.
Experiência
combinada com sensibilidade aguçada que o psicanalista e escritor leva tanto
para o consultório quanto para os artigos. Em ambos, busca entender a
psicologia dos indivíduos, das relações amorosas, do comportamento de homens e
mulheres de todas as idades. Mulheres com um plural mais acentuado do que os
homens, já que ele aponta a inexistência da “mulher universal”. Diz: “Mulheres
formam um conjunto muito menos que os homens. As mulheres são muitas
singularidades”.
É do alto de
muita observação que ele revela: homens são casamenteiros, dizem facilmente “eu
te amo” e até se excedem. “São sentimentalmente over”, acusa. Mulheres, ao
contrário do que se imagina, traem tanto quando eles.
Numa coisa
eles empatam: homens e mulheres falam na mesma medida no divã. “Apesar dos
sotaques diferentes, os temas são mais ou menos os mesmos. De um lado, amor e
sexo. De outro, o trabalho e os sonhos de afirmação e reconhecimento social.”
Em
detrimento de tantas experiências, o psicanalista tem suas próprias convicções.
Defende que é importante ser fiel, mas aos seus próprios desejos. “Imaginar que
minha parceira se trairia por fidelidade a mim é a última coisa que desejo para
nós. O que me faz amá-la é vê-la fiel a si mesmo, não a mim.” E garante que é
legítimo terminar um casamento com uma mensagem de texto pelo celular. “Prefiro
terminar um casamento por SMS do que ter uma conversa sobre isso. Detesto
discutir a relação.”
Veja a
seguir os melhores momentos da entrevista:
DIVÃ É OBSERVATÓRIO DO
COMPORTAMENTO
O
psicanalista é um receptáculo, uma espécie de grande ouvido. No fim das contas,
o que alguém mais procura numa análise é a possibilidade de se expressar e de
ser escutado, de ser reconhecido em seu sofrimento. Precisa disso muito mais do
que uma palavra que vá orientá-lo. Alguém menos poético diria que o
psicanalista é o penico do mundo. E essa posição de receptáculo acaba nos
moldando. Resultado: depois de tantos anos de escuta e intervenção prudente em
relação ao conjunto dessa experiência, posso levar isso para meus artigos (ele
assina uma coluna semanal no jornal Folha de S. Paulo) e minha interpretação
dos indivíduos.
FEMINIZAÇÃO DO HOMEM E
MASCULINIZAÇÃO DA MULHER
A grande
transformação do comportamento humano ocorreu nos anos da minha formação, nos
anos 60. Costumo dizer que a única revolução do século XX que saiu vitoriosa
foi a revolução de costumes vencida por minha geração. Desse modo, não vejo
muito sentido quando se fala hoje numa grande inversão dos papéis entre homens
e mulheres. Acho que “inversão” não seria uma palavra certa, e sim uma
complexificação dos papéis de gênero e sexuais, que são duas coisas distintas
pelo menos no mundo ocidental. Esse fenômeno começou no imediato pós-guerra. E
o que fez mudar não foi o feminismo, mas a própria guerra: as mulheres saíram
de casa para trabalhar enquanto os homens estavam no campo de batalha. Quando
eles voltaram, elas perceberam que seria muito melhor continuar no trabalho do
que ficar em casa usando a batedeira.
BRASIL MENOS CLASSISTA, RACISTA E
MACHISTA
O Brasil
mudou muito desde que eu comecei a clinicar aqui, por volta de 1985 e 1986. E
mudou não só, como todos sabem, do ponto de vista da abertura comercial –
Collor serviu para alguma coisa! –, mas também cultural. A transformação nos
costumes foi significativa desde então. O país que conheci quando cheguei era
mais classista, mais racista e mais machista. A centralidade do homem ainda é
presente, claro, mas não só aqui no Brasil como na França e nos EUA. O
privilégio que o filho continua tendo no amor materno vai mudar, e já está
mudando, mas ainda vai levar meio ou um século. Mas é provavelmente a mudança
mais importante para que exista uma transformação de fato dos papéis de cada
gênero.
INFANTOLATRIA
O ponto em
que os homens e as mulheres brasileiros estão mais atrasados é a sua relação
com as crianças. No Brasil, a infantolatria é um negócio bizarro, sobretudo
para um europeu de origem como eu (Contardo nasceu em Milão). Fico
impressionado com a centralidade das crianças nas fantasias e nos desejos de
uma família brasileira, sua relação com os filhos, os gastos totalmente
desproporcionais em relação ao que se ganha, sem esquecer o quanto se deixa em
segundo plano a relação entre homem e mulher em detrimento do filho. Por essa
razão, a separação de casais é mais frequente depois do nascimento de um filho.
As pessoas acham que fazer um filho fortalece o casamento, mas em geral essa é
uma das principais razões da separação.
ENVOLVIMENTO AFETIVO x
ENVOLVIMENTO SEXUAL PÓS-PARTO
Há uma
realidade inegável em torno da depressão depois do parto para a mulher. Mas
pouco se fala de que, para o homem principalmente, existem episódios psicóticos
no mesmo período. Esquecemos facilmente que a paternidade é um momento propício
para o desenvolvimento de uma crise psicótica no homem – que às vezes estava
tranquila e só é desencadeada de vez pelo parto. Além do peso emocional do
momento, há a confrontação de uma necessidade de se mostrar à altura da função
do pai. É uma tarefa que pode ser enlouquecedora para muitos. Como qualquer
grande desenvolvimento na vida, aquilo implica uma redução do campo dos
possíveis. Ou seja, o homem pensa: “Agora sou pai para sempre”. Isso mexe com a
cabeça de qualquer um.
CASAMENTO COMO ENTERRO DO SEXO
Não é
obrigatório que o casamento seja o enterro do sexo, mas infelizmente em muitos
casos ele é. Vejo tantos exemplos de casais que chamam um ao outro de papai e
mamãe, o que já é um péssimo sinal. Ou casais que imitam a voz das crianças.
São fatores que ampliam a dificuldade do sexo se manter ativo. Por outro lado,
não há nada comparável a uma relação que se aprofunda para gerar uma vida
sexual interessante. No fundo, uma vida sexual interessante não é a vida do
ficante. Todos sabem que, para homens e mulheres, a primeira transa com alguém
é uma tristeza. Fazemos de conta que foi muito bonita, mas em geral é ruim e
frustrante.
QUEIXA DO DESEJO FALIDO
Deveríamos
poder transar com nossas próprias fantasias e com as fantasias do outro. É
dessa maneira que o encontro vale a pena. Somente quando uma relação se
aprofunda é que cada um pode colocar em jogo suas fantasias e seus desejos, que
é o que realmente sustenta uma vida sexual interessante. Desse ponto de vista,
o casamento deveria o lugar onde isso mais funciona. Mas a realidade diz que
não, e o casamento vira a máxima da queixa do desejo falido. O desejo tem certa
tendência a encontrar várias dificuldades de se realizar, mas o casamento acaba
aguçando isso.
AMOR É ENCANTO DE UM ENCONTRO;
CASAMENTO É CÔMICO
Nosso modelo
de amor é o modelo trazido pela literatura. Enquanto o fenômeno literário
mostra o amor como o encanto de um encontro, o mesmo modelo literário mostra a
convivência como uma comédia. O casamento quase sempre é mostrado como algo
engraçado porque a convivência é insuportável. A mulher é insuportável, o
marido é corno, e todo mundo ri. A literatura nos ensinou que o amor é um
grande sonho atrás do qual é preciso correr e que o casamento é, no fundo, uma
grande piada. Portanto, a literatura tem sua parcela de culpa na frustração que
temos com a convivência do casamento.
TRAIÇÃO
Vejo as
pessoas virem ao consultório realmente sofridas diante da traição. A “traição
do outro” – entre aspas, porque não entendo bem o que seja – é vivida como a
ferida narcísica. Afinal, a traição mostraria que ela ou ele não me ama, que
não sou suficiente para o outro. Essa continua sendo a realidade do ciúme. Há
pessoas que lidam com o ciúme de forma patológica, de mal poder expor
publicamente seu parceiro ou parceira.
Tenho uma
interpretação diferente da traição, minha capacidade de empatia com o
sentimento do ciúme e do sofrimento diante da traição é realmente muito
pequena. Não que eu despreze o sentimento, mas porque me é bastante
estrangeiro. Ou talvez, ao contrário, isso me permita olhar para aquilo como
uma espécie de exterioridade e ver com certa frieza o problema.
Para mim, a
única traição realmente inaceitável é a traição de si mesmo. Imaginar que minha
parceira se trairia por fidelidade a mim é a última coisa que desejo para nós.
O que me faz amá-la é vê-la fiel a si mesmo, não a mim. Não quero que minha
parceira renuncie a nada, não traia o seu próprio desejo. Como o desejo por um
outro homem. Essa visão não me atrapalha porque não sou ciumento.
CASAMENTO COMO DESCULPA
Se há uma
coisa que realmente é um dos propósitos cômicos do casamento é este: o
casamento é uma boa desculpa para não fazer o que se deseja. Em outras
palavras, o homem amarela diante do seu desejo, mas pode dizer que se priva
desse desejo porque é casado. Na falta de coragem para assumir esse desejo,
tem-se o casamento para responsabilizar.
HOMENS, MULHERES E “DRS”
Tinha essa
ideia de que as mulheres seriam mais simpáticas às DRs (discussão de
relacionamento) do que os homens. Mas hoje acho que não. Os homens gostam de
DRs, e vejo muitas mulheres como eu, que não tenho nenhuma simpatia por isso.
Sou capaz de me separar em 15 minutos, e por SMS, terminando um casamento de 10
anos. Mas prefiro terminar um casamento por SMS do que ter uma conversa sobre
isso. Detesto DRs.
EQUÍVOCOS SOBRE OS HOMENS
Também ao
contrário do que reza a lenda, os homens são casamenteiros. Dizem “eu te amo”
muito facilmente – são até chatos nesse ponto, pois são sentimentalmente over.
É que eles produzem vasopressina depois do sexo, o hormônio que faz com que as
pessoas fiquem juntinhas. Daí porque depois do sexo os homens são capazes de
dizer muita coisa difícil de aguentar. Deveriam fazer tratamento hormonal logo
depois do sexo.
Há outras
concepções equivocadas, como a de que os homens são menos fiéis do que as
mulheres. Não é verdade. Do meu observatório posso lhes garantir que as
mulheres são tão adúlteras quanto os homens.
HOMENS SÃO PLURAIS, MULHERES SÃO
SINGULARES
Lacan dizia
que a mulher não existe, e nisso ele tinha absoluta razão, no sentido de que
não há uma mulher universal. Existem as mulheres, que é preciso tomar uma a
uma, porque elas formam um conjunto muito menos que os homens. Se vocês
observarem os conjuntos em que os homens se perdem na mediocridade do coletivo,
não há mulheres. As torcidas são masculinas, os grandes partidos totalitários
são inteiramente masculinos. As mulheres são muitas singularidades.
Os homens
também são muitas singularidades, mas inteiramente capazes de se reunir num
negócio viscoso, grudento e um pouco nojento que são as coletividades em que
eles se perdem. Se o mundo fosse povoado só de mulheres, nunca teríamos tido um
partido nazista, fascista ou comunista-estalinista.
Teríamos
problemas, teríamos mulheres isoladamente sinistras, mas não mais do que isso.
Por essa razão as mulheres são muito mais simpáticas do que os homens. Gosto
das mulheres nesse sentido, não aquela coisa cafona (gosto de mulher), mas
gosto de como as mulheres funcionam.
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