O Hospital Pérola Byinton, em São Paulo, é
referência no atendimento a mulheres
A presidente
Dilma Rousseff terá de apreciar, até o
dia 1 de agosto, um projeto de lei de apenas duas páginas — mas cheio de
espinhos. Trata-se do PLC 3/2013, que obriga todos os hospitais do Sistema
Único de Saúde (SUS) a oferecer às vítimas da violência sexual um atendimento
“emergencial, integral e multidisciplinar”, e define o escopo desse atendimento.
Ele foi aprovado sem alarde pelo Congresso Nacional no dia 12 de julho, com um
empurrãozinho do ministro da Saúde Alexandre Padilha, mais de uma década depois
de a versão original ter sido apresentada pela deputada Iara Bernardi (PT-SP).
Desde então, ativistas dos direitos da mulher e entidades religiosas pressionam
o governo, num cabo de guerra para conseguir que a presidente sancione a lei ou
vete os seus dispositivos.
Inicialmente,
foram os incisos IV e VII do artigo 3º que dispararam o alarme das entidades
religiosas. Depois de uma reunião no dia 17 de julho com a ministra da Casa Civil Gleisi Hoffmann,
representantes das religiões católica, evangélica e espírita protocolaram um
pedido para que ambos fossem vetados.
Pílula do
dia seguinte — O inciso IV torna obrigatória a oferta de serviços de
“profilaxia da gravidez” para vítimas de estupro. Religiosos entendem que ele
institucionaliza o que alguns chamam de “aborto precoce”.
Profilaxia
da gravidez é, de fato, uma expressão infeliz. Torná-la sinônimo de aborto, no
entanto, é torturar a língua. Profilaxia significa prevenção. Prevenir a
gravidez é evitar que ela comece, e não interrompê-la. No contexto da lei,
significa que os hospitais do SUS teriam de manter estoques de um contraceptivo
para oferecê-lo a mulheres violentadas que desejassem usá-lo: a pílula do dia
seguinte ou pílula de emergência, como os médicos preferem chamá-la. Isso, em
boa medida, já acontece.
Contracepção
não é aborto. A pílula do dia seguinte não é abortiva. Seu efeito é bem
estudado pela medicina: ela inibe a fecundação, mas não interrompe a gravidez
ou força a eliminação precoce do embrião. “Pílulas contraceptivas de emergência
não são eficazes depois que o processo de implantação no útero teve início, não
causando o aborto”, diz o guia oficial da Organização Mundial de Saúde (OMS)
sobre o assunto. Para pôr a questão nos seus devidos termos, o Palácio do
Planalto trabalha com a hipótese de vetar a expressão “profilaxia da gravidez”
e propor que se adote o termo “contraceptivo de emergência”, mais claro e
preciso.
O outro alvo
inicial dos opositores da lei, o inciso VII, impõe o “fornecimento de
informações à vítima sobre direitos legais e todos os serviços sanitários
disponíveis”. Seus críticos afirmam que o texto é inaceitável por sugerir que o
aborto previsto no artigo 128 do Código Penal — aquele realizado por médico,
com o consentimento da gestante, quando a gravidez decorre de estupro — é um
“direito legal”. O aborto, dizem eles, é um crime no ordenamento jurídico
brasileiro, e o Código Penal se limita a suspender a punição desse crime num
contexto específico.
NORMA TÉCNICA DO ABORTO — Nos últimos dias, cresceu
entre os religiosos o sentimento de que o PLC 3/2013 deve ser derrubado na
íntegra. Seu efeito final, alegam, seria tornar cogente a aplicação da norma
técnica do Ministério da Saúde que fixa o protocolo hospitalar para o
tratamento das vítimas da violência sexual. O nome oficial do documento é
Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência contra Mulheres e
Adolescentes, mas os religiosos o chamam de Norma Técnica do Aborto.
Por não
terem força de lei, as regras do Ministério da Saúde podem hoje ser ignoradas
por médicos e enfermeiros. Com a aprovação do PLC 3/2013, no entanto, os
profissionais do SUS que desconsiderassem o protocolo existente poderiam ser
acusados de faltar com o dever de proporcionar um “atendimento integral” às
pacientes.
Era isso
mesmo que a deputada Iara Bernardes tinha em mente ao apresentar o projeto em
1999, logo depois de a primeira versão da portaria sobre violência sexual ser
publicada pelo Ministério da Saúde. “A lei reforça o cumprimento do protocolo.
Foi idealizada para deter setores que se negam a segui-lo”, diz ela.
OBJEÇÃO DE CONSCIÊNCIA — Para Lenise Garcia, presidente
do Movimento Nacional da Cidadania pela Vida — Brasil Sem Aborto, a lei acaba
com a possibilidade de agentes de saúde alegarem motivos de foro íntimo, como
crenças religiosas, para se recusar a interromper uma gestação. “A partir de
agora todos os hospitais seriam obrigados a fazer o procedimento, inclusive
aqueles que tenham profissionais com restrições de consciência”, afirma.
Na verdade,
a norma técnica resguarda a possibilidade da chamada “objeção de consciência”,
mas cria alguns limites para ela. Por exemplo, quando houver risco de morte ou
de sequelas decorrentes da omissão de atendimento. Ou quando não houver outro
profissional que faça o aborto “juridicamente permitido” — o que significa que
em cidades pequenas é possível imaginar, sim, situações em que um médico se
veja obrigado a realizar o procedimento, ainda que no íntimo discorde dele.
CAVALO DE TRÓIA — Outro ponto de discórdia
decorre de a norma técnica sustentar que lei brasileira não exige boletim de
ocorrência policial ou laudo do Instituto Médico Legal (IML) sobre a violência
sofrida para que se faça um aborto. Isso poderia dar margem a fraudes e abortos
indiscriminados.
Para os
religiosos, portanto, a nova lei é uma espécie de cavalo de Tróia, que traria
escondido o mecanismo para facilitar e ampliar a prática do aborto no Brasil.
“Até agora se definia o estupro com provas. Esse projeto diz que estupro é
simplesmente a relação sexual não consentida. Isso é de uma elasticidade
monumental”, diz o jurista católico Ives Gandra Martins. “Uma pessoa pode
chegar a um hospital e dizer ‘fui estuprada’. A partir daí é a palavra dela que
vai valer, e não a violência objetivamente cometida. Ela poderia fazer o
aborto, sem exame, sem nada, e o médico que estiver num hospital público, caso
discorde da prática, terá de fazer o que lhe repugna ou ser demitido e sofrer
um processo.”
“A
presidente Dilma deu a palavra de que não legalizaria o aborto, mas o que os
interessados na aprovação desse texto estão fazendo é, nas entrelinhas,
legalizar o que nós vemos como um crime”, diz Geraldo Campetti, vice-presidente
da Federação Espírita Brasileira (FEB).
“Não há
inovação” — Para Iara Bernardes, dizer que a lei inova em relação ao aborto é
uma caricatura. “Ela não traz nenhuma hipótese nova de aborto, não avança em
nada nesse assunto”, diz. “Ela procura minimizar as consequências da violência
sexual, de uma situação que já é um drama, um sofrimento, fazendo com que as
práticas que já são observadas nos hospitais de referência dos grandes centros
se apliquem também ao restante do Brasil.”
Colega da
deputada no PT, a ministra da Cultura, Marta Suplicy, que fez carreira política
com bandeiras como a proteção aos direitos da mulher, diz que o atendimento em
hospitais a vítimas de violência sexual deve ser encarado como uma política
pública de proteção, e não como uma afronta a crenças religiosas. “É um projeto
contemporâneo que protege a mulher vítima de estupro e, ao mesmo tempo, aborda
um problema de saúde pública”, disse ao site de VEJA.
A tendência
é que a presidente Dilma ouça, neste caso, as vozes do seu partido e das
entidades femininas. O Palácio do Planalto trabalha com a hipótese de vetar
apenas a expressão ambígua “profilaxia da gravidez” e propor que ela seja
substituída pelo termo “contraceptivo de emergência”. O restante da lei
seguiria como está.
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