Tião Oleiro receberá homenagens na
tarde de hoje
Por: Sérgio Villar
Ceará-Mirim
tem um povo e uma cultura moldados pelas terras úmidas de um vale pontilhado
por engenhos. O município, a 30 quilômetros de Natal, ainda respira o doce
aroma do açúcar, do mel e da rapadura. Algumas das manifestações culturais
preservadas na cidade representam as maiores riquezas do folclore
norte-rio-grandense. E o Congo de Guerra, comandado pelo mestre Tião Oleiro, é
uma delas. Hoje, ele completa 100 anos de vida, com homenagem e missa em praça
pública, e apresentação de outro folguedo local originalíssimo: o grupo de
Caboclinhos.
O Congo
brincado em Ceará-Mirim foi trazido pelo negro, ex-cativo Pedro Mascenas. Ele
veio de Fortaleza no fim do século 19. O folguedo costumava animar festas nos engenhos
de açúcar. Sempre em louvor a São Benedito e Nossa Senhora do Rosário – santos
protetores dos escravos. Os congos iniciais de Ceará-Mirim eram chamados Congos
de Saiote. O grupo se apresentava de saia, blusão, gorro de papelão na cabeça e
enfeites de cordões de conta no pescoço. Em pouco tempo se espalhou pelo Vale
Verde da cidade, sob a tutela do mestre João José da Rocha, operário e
agricultor do Engenho Guanabara.
Por um
tempo, o grupo foi extinto. O substituto veio tempos depois. O filho do mestre
Sebastião João da Rocha (mestre Tião) assumiu a brincadeira e resgatou o auto,
em 1934, com o nome Congos de Guerra – uma homenagem aos soldados mortos na
Revolução Constitucionalista, nos idos da década de 30. Novas canções são
criadas. Se antes as referências eram das batalhas na África ou Europa, durante
a Idade Média, as novas canções passaram a relatar também fatos heroicos de
marujos e guerras. “Tava morrendo muita gente. soldados amigos meus iam pra São
Paulo e não voltavam. Dava uma saudade medonha”.
As
palavras são do mestre Tião Oleiro, datadas ainda de 2008. Na oportunidade, o
repórter foi até Ceará-Mirim conhecer o Congos de Guerra. Contava 93 anos e
ainda brincava com seu grupo, de maioria jovem (nenhum com mais de 15 anos),
diferente do início no Engenho Guanabara. Muitos demonstravam falta de
compromisso e até envergonhados em vestir as indumentárias do folguedo. Mas o
mestre repassava as informações das origens e continuidade do Congo com todo o
interesse. E sentia-se importante por isso, ao lado do fiel escudeiro José
Baracho, à época com 79 anos e hoje já falecido.
Mestre
Tião e Baracho organizaram uma apresentação simbólica à reportagem. Nas
coreografias do Congo não cabem improviso. E por vezes se via uma “espadada” de
madeira nas pernas da garotada para endireitar o compasso. A um só tempo todos
fazem os mesmos movimentos de corpo e de passos, conforme a batida da música e
aos rituais de marcha, contramarcha, mudança de direção, agachamentos, batidas
de espadas entre os “marujos”, principalmente na prisão do embaixador. As cores
são azul e vermelha. Mestre Tião relacionou o Congo às cores do Pastoril.
Visão além do alcance
Mestre
Tião perdeu a visão nos últimos anos. Mas ainda toca seu fole e se empolga ao
escutar as canções do folguedo. Está lúcido. Pior situação está a prefeitura de
Ceará-Mirim. A eles falta visão e lucidez. Segundo o professor Gibson Machado,
amigo do mestre Tião e defensor ativo da cultura popular do município, o mestre
comandaria apresentações do Congo mesmo sem visão, mas faltam convites.
O grupo
está inativo há anos. “Taboão (comunidade onde reside o mestre Tião, distante
dois quilômetros do centro da cidade) é passagem do trem em Ceará-Mirim. O trem
passa dentro da comunidade. Seria um ponto de cultura importante. Mas eles
nunca fizeram nada por isso; sequer visitaram o mestre Tião nesses anos”.
Sem
contar com ajuda da chefia do poder executivo municipal, Gibson Machado
conseguiu aprovação na Câmara para o projeto legislativo que institui o Dia
Municipal da Cultura, em 14 de maio, aniversário do mestre Tião. Também partiu
do professor, que também é ex-presidente da fundação cultural de Ceará-Mirim,
as homenagens no dia de hoje ao mestre, com a missa e os convites aos grupos
folclóricos os quais ele mantém constante contato. E desse contato e inúmeras
entrevistas, Gibson mantém rico acervo, contribuindo para a memória da cultura
popular cearamirinense.
Biografia do mestre Tião
Sua vida
se confunde com a história de Ceará-mirim. Nasceu em 14 de maio de 1914, no
engenho Grande, propriedade de Antonio Sobral e Dona Bela. Sua infância foi nos
terreiros dos engenhos e nas grotas do rio Ceará-Mirim, onde brincava de
galinha Gorda, Tica e de escorregar nas ribanceiras lisas do rio. Porém, foi na
bagaceira do Engenho Grande que viveu parte de sua vida.
Muito
pequeno observava a labuta dos mais velhos nos eitos dos engenhos. Assim, foi
adquirindo experiências e, em pouco tempo, estava trabalhando na porteira da
bagaceira e espalhando a bandeira da cana. Foi seu primeiro trabalho e, por
esse serviço, recebia três tons.
Costuma
dizer que o Engenho Grande foi seu maior professor. E lá exerceu todas as
funções, começando na bagaceira até o último posto, o de foguista, onde
trabalhou enquanto o “velho engenho grande” estava de fogo aceso. Trabalhou
também nas usinas, como maquinista.
Durante
o período em que trabalhou nos engenhos, aprendeu a tocar acordeon, comprou uma
sanfoninha de oito baixos, e, nas horas de lazer e folga, animava, como músico,
os bailes de pastoris, boi de reis e pagodes no vale do Ceará-Mirim, profissão
que exerceu depois que deixou de trabalhar nos engenhos. O congo sempre foi
requisitado para animar as noites nos engenhos e fazendas da cidade.
A
lucidez, mantida ainda hoje, impressiona. A locomoção é dificultada apenas pela
falta de visão. Os movimentos ainda mantém agilidade. O trabalho duro no
engenho fortificou os músculos, a resistência. E nada de comida balanceada.
“Passei uma vida boa de barriga. A comida era forte; muito mel de furo. O fim
de semana eu farreava ele todinho. Depois, era uma pedra de açúcar bruto e uma
caneca de água fria. Ô vida beleza!”, relatou o mestre ao repórter, em 2008,
para depois tomar uma “chamada” de cachaça com o amigo Baracho na bodeguinha
próxima a sua casa. Mas outro remédio ajudou na longevidade. Mestre Tião casou
aos 34 anos. Sua mulher tinha metade da idade: 17 anos. Tiveram 13 filhos.
Pela sua
contribuição à cultura do Ceará-Mirim, em 2004 o mestre Tião e seu Congo de
Guerra foram ovacionados quando se apresentaram no Fórum Social Nordestino, na
Universidade Federal de Pernambuco, na cidade de Recife.
No ano
de 2005, o Canal Futura, através da Fundação Roberto Marinho, criou o programa
“A beleza do meu Lugar” baseado na luta de Seu Tião em prol da cultura popular.
Neste programa foram documentados 16 mestres brasileiros. Três do Rio Grande do
Norte, entre eles, Tião Oleiro. Por este documentário, a Fundação Roberto
Marinho mandou pintar um mural no corredor de sua sede no Rio de Janeiro com a
imagem de Seu Tião. Este documentário concorreu ao 19º Premio de Curtas de São
Paulo naquele ano.
Ainda em
2005 a equipe do Projeto Vernáculo documentou a história de Mestre Tião e o
Congo de Guerra. Este documentário concorreu ao 9º Premio de Curtas Potiguares.
No ano
de 2009 ele foi reconhecido como Patrimônio Vivo do Rio Grande do Norte pela
Fundação José Augusto, através do projeto RPV, de autoria do deputado Fernando
Mineiro.
No ano
de 2011, os professores do IFRN, Pablo Capistrano e Suély Souza produziram o
documentário “Seu Tião e a História do Congo de Guerra” para o Projeto de
Cultura Potiguar, exibido naquela instituição.
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