quarta-feira, 14 de maio de 2014

MESTRE DE CONGO DE GUERRA DE CEARÁ-MIRIM CELEBRA HOJE 100 ANOS

Tião Oleiro receberá homenagens na tarde de hoje

Por: Sérgio Villar

Ceará-Mirim tem um povo e uma cultura moldados pelas terras úmidas de um vale pontilhado por engenhos. O município, a 30 quilômetros de Natal, ainda respira o doce aroma do açúcar, do mel e da rapadura. Algumas das manifestações culturais preservadas na cidade representam as maiores riquezas do folclore norte-rio-grandense. E o Congo de Guerra, comandado pelo mestre Tião Oleiro, é uma delas. Hoje, ele completa 100 anos de vida, com homenagem e missa em praça pública, e apresentação de outro folguedo local originalíssimo: o grupo de Caboclinhos.

O Congo brincado em Ceará-Mirim foi trazido pelo negro, ex-cativo Pedro Mascenas. Ele veio de Fortaleza no fim do século 19. O folguedo costumava animar festas nos engenhos de açúcar. Sempre em louvor a São Benedito e Nossa Senhora do Rosário – santos protetores dos escravos. Os congos iniciais de Ceará-Mirim eram chamados Congos de Saiote. O grupo se apresentava de saia, blusão, gorro de papelão na cabeça e enfeites de cordões de conta no pescoço. Em pouco tempo se espalhou pelo Vale Verde da cidade, sob a tutela do mestre João José da Rocha, operário e agricultor do Engenho Guanabara.

Por um tempo, o grupo foi extinto. O substituto veio tempos depois. O filho do mestre Sebastião João da Rocha (mestre Tião) assumiu a brincadeira e resgatou o auto, em 1934, com o nome Congos de Guerra – uma homenagem aos soldados mortos na Revolução Constitucionalista, nos idos da década de 30. Novas canções são criadas. Se antes as referências eram das batalhas na África ou Europa, durante a Idade Média, as novas canções passaram a relatar também fatos heroicos de marujos e guerras. “Tava morrendo muita gente. soldados amigos meus iam pra São Paulo e não voltavam. Dava uma saudade medonha”.

As palavras são do mestre Tião Oleiro, datadas ainda de 2008. Na oportunidade, o repórter foi até Ceará-Mirim conhecer o Congos de Guerra. Contava 93 anos e ainda brincava com seu grupo, de maioria jovem (nenhum com mais de 15 anos), diferente do início no Engenho Guanabara. Muitos demonstravam falta de compromisso e até envergonhados em vestir as indumentárias do folguedo. Mas o mestre repassava as informações das origens e continuidade do Congo com todo o interesse. E sentia-se importante por isso, ao lado do fiel escudeiro José Baracho, à época com 79 anos e hoje já falecido.

Mestre Tião e Baracho organizaram uma apresentação simbólica à reportagem. Nas coreografias do Congo não cabem improviso. E por vezes se via uma “espadada” de madeira nas pernas da garotada para endireitar o compasso. A um só tempo todos fazem os mesmos movimentos de corpo e de passos, conforme a batida da música e aos rituais de marcha, contramarcha, mudança de direção, agachamentos, batidas de espadas entre os “marujos”, principalmente na prisão do embaixador. As cores são azul e vermelha. Mestre Tião relacionou o Congo às cores do Pastoril.

Visão além do alcance

Mestre Tião perdeu a visão nos últimos anos. Mas ainda toca seu fole e se empolga ao escutar as canções do folguedo. Está lúcido. Pior situação está a prefeitura de Ceará-Mirim. A eles falta visão e lucidez. Segundo o professor Gibson Machado, amigo do mestre Tião e defensor ativo da cultura popular do município, o mestre comandaria apresentações do Congo mesmo sem visão, mas faltam convites.

O grupo está inativo há anos. “Taboão (comunidade onde reside o mestre Tião, distante dois quilômetros do centro da cidade) é passagem do trem em Ceará-Mirim. O trem passa dentro da comunidade. Seria um ponto de cultura importante. Mas eles nunca fizeram nada por isso; sequer visitaram o mestre Tião nesses anos”.

Sem contar com ajuda da chefia do poder executivo municipal, Gibson Machado conseguiu aprovação na Câmara para o projeto legislativo que institui o Dia Municipal da Cultura, em 14 de maio, aniversário do mestre Tião. Também partiu do professor, que também é ex-presidente da fundação cultural de Ceará-Mirim, as homenagens no dia de hoje ao mestre, com a missa e os convites aos grupos folclóricos os quais ele mantém constante contato. E desse contato e inúmeras entrevistas, Gibson mantém rico acervo, contribuindo para a memória da cultura popular cearamirinense.

Biografia do mestre Tião

Sua vida se confunde com a história de Ceará-mirim. Nasceu em 14 de maio de 1914, no engenho Grande, propriedade de Antonio Sobral e Dona Bela. Sua infância foi nos terreiros dos engenhos e nas grotas do rio Ceará-Mirim, onde brincava de galinha Gorda, Tica e de escorregar nas ribanceiras lisas do rio. Porém, foi na bagaceira do Engenho Grande que viveu parte de sua vida.

Muito pequeno observava a labuta dos mais velhos nos eitos dos engenhos. Assim, foi adquirindo experiências e, em pouco tempo, estava trabalhando na porteira da bagaceira e espalhando a bandeira da cana. Foi seu primeiro trabalho e, por esse serviço, recebia três tons.
Costuma dizer que o Engenho Grande foi seu maior professor. E lá exerceu todas as funções, começando na bagaceira até o último posto, o de foguista, onde trabalhou enquanto o “velho engenho grande” estava de fogo aceso. Trabalhou também nas usinas, como maquinista.

Durante o período em que trabalhou nos engenhos, aprendeu a tocar acordeon, comprou uma sanfoninha de oito baixos, e, nas horas de lazer e folga, animava, como músico, os bailes de pastoris, boi de reis e pagodes no vale do Ceará-Mirim, profissão que exerceu depois que deixou de trabalhar nos engenhos. O congo sempre foi requisitado para animar as noites nos engenhos e fazendas da cidade.

A lucidez, mantida ainda hoje, impressiona. A locomoção é dificultada apenas pela falta de visão. Os movimentos ainda mantém agilidade. O trabalho duro no engenho fortificou os músculos, a resistência. E nada de comida balanceada. “Passei uma vida boa de barriga. A comida era forte; muito mel de furo. O fim de semana eu farreava ele todinho. Depois, era uma pedra de açúcar bruto e uma caneca de água fria. Ô vida beleza!”, relatou o mestre ao repórter, em 2008, para depois tomar uma “chamada” de cachaça com o amigo Baracho na bodeguinha próxima a sua casa. Mas outro remédio ajudou na longevidade. Mestre Tião casou aos 34 anos. Sua mulher tinha metade da idade: 17 anos. Tiveram 13 filhos.

Pela sua contribuição à cultura do Ceará-Mirim, em 2004 o mestre Tião e seu Congo de Guerra foram ovacionados quando se apresentaram no Fórum Social Nordestino, na Universidade Federal de Pernambuco, na cidade de Recife.

No ano de 2005, o Canal Futura, através da Fundação Roberto Marinho, criou o programa “A beleza do meu Lugar” baseado na luta de Seu Tião em prol da cultura popular. Neste programa foram documentados 16 mestres brasileiros. Três do Rio Grande do Norte, entre eles, Tião Oleiro. Por este documentário, a Fundação Roberto Marinho mandou pintar um mural no corredor de sua sede no Rio de Janeiro com a imagem de Seu Tião. Este documentário concorreu ao 19º Premio de Curtas de São Paulo naquele ano.

Ainda em 2005 a equipe do Projeto Vernáculo documentou a história de Mestre Tião e o Congo de Guerra. Este documentário concorreu ao 9º Premio de Curtas Potiguares.

No ano de 2009 ele foi reconhecido como Patrimônio Vivo do Rio Grande do Norte pela Fundação José Augusto, através do projeto RPV, de autoria do deputado Fernando Mineiro.

No ano de 2011, os professores do IFRN, Pablo Capistrano e Suély Souza produziram o documentário “Seu Tião e a História do Congo de Guerra” para o Projeto de Cultura Potiguar, exibido naquela instituição.


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