Procurado pela polícia e hospedado de favor na
casa de fãs, o compositor de clássicos como “Divina comédia humana” protagoniza
uma história de amor e decadência.
CAPÍTULO 1
“NO TREVO, A 100 POR
HORA”
Edna
Prometheu é o pseudônimo da produtora cultural Edna Assunção de Araújo, de 46
anos. Morena, de cabelos encaracolados e baixa estatura, não é uma mulher de
beleza estonteante. Militante de organizações de extrema-esquerda, é definida
por seus amigos como “idealista utópica”. No começo de 2005, ela estava em São
Paulo, no ateliê do artista plástico cearense Aldemir Martins, já morto, quando
entrou pela porta o músico Belchior. O cantor de “Paralelas” também pinta
quadros e frequenta o ambiente artístico. Edna queria organizar uma exposição
de Aldemir no Ceará. Belchior disse que tinha amigos por lá, poderia ajudar.
Trocaram telefones.
Os dois
acabaram organizando juntos a exposição em Fortaleza, naquele mesmo ano. Na
volta, Edna ligou para um amigo e contou a novidade: “Estamos namorando”. A
partir daí, a vida plácida de Belchior derrapou no trevo a 100 por hora, como
diz a letra de “Paralelas”. Para ficar com Edna, ele abandonou a então mulher,
Ângela, com quem estava casado havia 35 anos, mãe de dois dos quatro filhos que
tem. Afastou-se dos amigos e foi gradativamente deixando de fazer shows, até
sumir sem dar explicações, em 2009. “Essa figura nefasta está fazendo uma
lavagem cerebral nele”, afirma Jackson Martins, ex-empresário de Belchior.
“Depois dela, sua vida só andou para trás”, diz o artista plástico cearense
Tota, amigo de Belchior.
O
desaparecimento de Belchior, há cinco anos, surpreendeu a todos, família e
amigos. Ninguém poderia esperar tal atitude. Ele deixou para trás a agenda de
shows e todo o patrimônio, incluindo roupas, documentos, quadros, automóveis e
apartamento. O sumiço transformou Belchior
em figura cult. A pergunta “onde está Belchior?” ecoou na internet e
teve até repercussão internacional. Surgiram blogs sobre o tema. Campanhas nas redes
sociais pediram a volta do músico. E
apareceram montagens cômicas – “memes” – em que Belchior aparece em locais
inusitados como a ilha do seriado Lost. Suas músicas no YouTube, que antes
tinham 5 mil acessos diários, hoje batem 500 mil.
O sucesso no
mundo virtual não trouxe nenhum benefício para o Belchior de carne e osso. Aos
67 anos, ele vive escondido com Edna em Porto Alegre. Não pode sair em público,
pois é procurado pela polícia. Pesam contra Belchior dois mandados de prisão
pelo não pagamento de pensões alimentícias. Uma devida à ex-mulher Ângela, com
quem tem dois filhos já maiores de idade, e outra à mãe de uma filha de 19 anos
que teve fora do casamento. Além das pensões, Belchior abandonou todos os
demais compromissos e é cobrado na Justiça em processos que correm à revelia. O
ex-secretário particular de Belchior, Célio Silva, ganhou um processo
trabalhista contra ele no valor de R$ 1 milhão. Não há mais como recorrer. As
contas de Belchior estão bloqueadas, e os imóveis que tinha comprometidos. Sem
dinheiro, ele já se abrigou numa instituição de caridade no Rio Grande do Sul e
morou de favor na casa de fãs que nem conhecia.
O mais
intrigante na espantosa história de Belchior é que ele aparentemente não agiu
movido por depressão, dívidas ou golpe publicitário, como se pensou no
princípio. A influência da mulher é apontada pela maioria dos amigos como o
motivo do seu comportamento. Ainda assim, não há unanimidade. “Edna não
conseguiria sozinha virar a cabeça de alguém inteligente como Belchior. São
dois sonhadores, juntaram suas utopias. Deixaram de acreditar neste mundo
materialista, objetivo e mesquinho e partiram para um caminho de desapego”, diz
o artista plástico José Roberto Aguilar, de 72 anos, amigo do casal.
Belchior
nasceu numa família simples no interior do Ceará. Foi o mais bem-sucedido entre
23 irmãos. Estudou medicina na capital. Abandonou o curso depois de quatro
anos, para ingressar na carreira artística. Estourou nos festivais na década de
1970 e compôs músicas com letras poderosas, como “A palo seco”. Seus sucessos
foram gravados por Elis Regina, Jair Rodrigues e Roberto Carlos. Belchior é um
artista com vasta cultura, domina cinco idiomas, conhece filosofia e gosta de
física quântica. Até os anos 2000, lançava em média um disco por ano. “Ele era
uma máquina, chegava a fazer três shows por noite. Era uma pessoa completamente
dedicada à carreira”, diz o parceiro e ex-sócio Jorge Mello.
Tudo isso
ficou para trás. O sumiço de Belchior lembra o caso do escritor russo Liev
Tolstói. Aos 82 anos, ele abandonou tudo para viver como camponês. Tolstói teve
um fim trágico – morreu de pneumonia depois de viajar na terceira classe de um
trem durante o inverno soviético. Belchior, quanto mais se afasta da vida em
sociedade, mais se afunda em dificuldades mundanas.
CAPÍTULO 2
“ONDE NADA É ETERNO”
Depois que
conheceu Edna, Belchior percorreu uma trajetória descendente em que, aos
poucos, se despojou de todos os bens e obrigações. No final de 2006, ainda com
a carreira aquecida, pediu que o empresário Jackson Martins parasse de agendar
novos shows. Pretendia passar um tempo se dedicando à pintura e à tradução do
poema Divina comédia, de Dante Alighieri, para uma linguagem popular. No início
do ano seguinte, deixou o apartamento em que vivia com Ângela, mas continuou
morando em São Paulo com Edna, num flat alugado. Desde então, a família diz não
ter mais notícias dele. Belchior não era um marido muito presente, ficava até
dois meses sem aparecer em casa. Teve duas filhas fora do casamento. Uma delas
com uma fã que morava em São Carlos, no interior de São Paulo, com quem saiu
uma única vez. A outra era fruto de um caso com uma estudante de psicologia no
Ceará. Belchior pagava pensão alimentícia para a primeira. A família da segunda
menina, hoje com 16 anos, não o acionou na Justiça.
As
complicações começaram a aparecer em 2008. Ângela cobrava na Justiça uma pensão
mensal de R$ 7 mil. Belchior se recusou a pagar. Na época, deixou de pagar
também a outra pensão. Seus amigos notaram uma diferença de comportamento. “Ele
parecia estranho. Me ligou perguntando sobre amigos que não vemos há 30 anos,
num tom de voz que não era o seu”, diz Jorge Mello. Em outubro daquele ano,
abandonou um carro no estacionamento do aeroporto de Congonhas, em São Paulo.
Belchior
continuou em São Paulo até março de 2009, quando deixou o flat sem quitar os
últimos meses de aluguel. Na garagem, ele largou um segundo carro, e em seu
apartamento ficaram roupas, rascunhos de música, cartões de crédito e o
passaporte. Belchior também abandonou tudo na casa alugada onde funcionava seu
escritório: coleção de quadros, discos, documentos e o computador onde estava
parte da tradução da Divina comédia, projeto que lhe consumira três anos. Seu
secretário, Célio Silva, continuou abrindo o escritório, na esperança de que
retornasse.
Belchior
viajara com Edna para o Uruguai, onde descansava num vilarejo. Foi processado
por Célio e por todos os credores que ficaram em São Paulo. Não se defendeu.
Foi representado por defensores públicos até nos processos de pensão
alimentícia. Como consequência, suas contas foram bloqueadas, e apareceram dois
mandados de prisão contra ele, já que não pagar pensão é um crime passível de
cadeia. “Como não tive contato com ele, a defesa ficou restrita a questões
formais”, diz a defensora Claudia Tannuri, escolhida para defendê-lo no
processo movido pela ex-mulher Ângela. Belchior nem sequer se importou com o
destino de seus pertences. As roupas que estavam no flat foram doadas à
caridade. A filha mais velha recolheu os documentos. Os carros foram levados
para depósitos públicos. A dívida com os estacionamentos já ultrapassava seu
valor. O proprietário do imóvel onde funcionava o escritório lacrou o lugar e
recolheu os pertences. Seus quadros se perderam com a umidade.
Como na
música “Divina comédia humana”, “em que nada é eterno”, Belchior e Edna
perambularam durante todo esse período de hotel em hotel – várias vezes, sem
pagar a conta. Amigos culpam Edna pela iniciativa. O primeiro hotel em que isso
aconteceu foi o Gran Marquise, em Fortaleza. Os dois ficaram hospedados ali
ainda em 2006. Saíram sem pagar dois meses de estadia, no valor de R$ 8 mil.
Depois, repetiram a prática em pelo menos quatro locais. No Icaraí Praia Hotel,
em Niterói, deixaram uma conta de R$ 4 mil. “Alguns funcionários tiveram de
arcar com parte da dívida, já que permitiram que ele ficasse hospedado mais de
uma semana sem pagar a conta”, diz o atual gerente, Germano Lopes. No Royal
Jardins Boutique, em São Paulo, a conta pendurada foi de R$ 12 mil. “Eles
deixaram um cheque caução, mas não tinha fundos”, diz Elly Shimasaki, gerente
na ocasião.
O caso mais
recente foi no hotel Cassino, na cidade de Artigas, no Uruguai, onde o casal se
hospedou entre julho de 2011 e novembro de 2012. Os últimos meses ficaram sem
pagamento, restando uma dívida de R$ 35 mil. Lá, Belchior deixou para trás
roupas e um laptop.
“É uma
lástima que um artista brasileiro dessa importância tenha agido assim”, diz o
gerente uruguaio Ricardo Rodrigues. O hotel entrou com uma queixa criminal
contra o casal.
CAPÍTULO 3
“SOU APENAS UM RAPAZ
LATINO-AMERICANO
SEM DINHEIRO NO BANCO”
Nos últimos
anos, Belchior se manteve à distância de qualquer atividade remunerada. Em
2009, quando o desaparecimento ganhou repercussão nacional, a montadora General
Motors ofereceu um cachê milionário para ele aparecer num comercial. Belchior
deveria dizer que, com o novo carro da GM, até ele voltava. Belchior recusou o
convite e ficou bastante chateado com o teor da proposta. O empresário Jackson
Martins diz que recebe constantes pedidos para shows, mas não consegue
localizá-lo desde 2007. “Pago as dívidas dele se ele voltar”, diz. Outro empresário
que trabalhou com Belchior por quase 30 anos, Hélio Rodrigues, diz que o
desaparecimento fez aumentar o interesse do público. “Depois do escândalo, ele
consegue lotar qualquer casa de espetáculo. Com dois shows em São Paulo,
eliminaria as dívidas”, diz.
Hoje, a
maior pendência de Belchior é o processo trabalhista ganho pelo secretário
Célio, no valor de R$ 1 milhão. A causa está julgada. Um apartamento de
propriedade do músico em São Paulo está em execução. A dívida da pensão para a
ex-mulher Ângela soma cerca de R$ 300 mil. Mas cresce a cada dia, já que
Belchior continua obrigado a pagar R$ 7 mil por mês. “O sumiço só agravou a
situação dele. Se não tem dinheiro, deveria enfrentar juridicamente o processo,
argumentando que não pode pagar”, diz Paulo Sato, advogado de Ângela. A pensão
atrasada da filha que mora em São Carlos gira em torno de R$ 90 mil. As dívidas
com hotéis cobradas na Justiça somam R$ 47 mil. Não são impagáveis, desde que
Belchior volte a se apresentar.
A derradeira
fonte de renda de Belchior eram os direitos autorais de suas músicas. Segundo o
Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad), nos últimos cinco anos
foram depositados R$ 367 mil referentes à execução pública de suas obras. Parte
do dinheiro ficou retida quando as contas bancárias foram bloqueadas. Desde
então, Belchior não contou com nenhum outro tipo de renda.
CAPÍTULO 4
“SAIA DO MEU CAMINHO,
EU PREFIRO ANDAR
SOZINHO”
Em janeiro
deste ano, Edna e Belchior procuraram a Defensoria Pública em Porto Alegre. A
história ganhou ingredientes ainda mais estranhos. Os dois alegavam que o
bloqueio das contas e os mandados de prisão impediam que ele trabalhasse e
voltasse a ganhar dinheiro para pagar as dívidas. Belchior aparentemente estava
disposto a voltar. Mas o comportamento do casal era confuso. Edna falava
desbragadamente, enquanto Belchior ficava quase sempre calado. “Durante um mês,
me informei sobre os processos que tramitam em São Paulo. Fizemos um pedido
judicial para a suspensão da execução, até que ele conseguisse se restabelecer.
Nesse meio-tempo, Belchior sumiu”, diz a defensora pública Luciana Kern, que o
atendeu.
Nesse mesmo
período, Edna ligou para o jornalista gaúcho Juremir Machado, que não conhecia.
Disse que Belchior estava escondido na cidade e precisava de ajuda. Ela queria
que Juremir os levasse à sede regional da TV Record para fazer uma denúncia
delirante. Juremir notou algo de incomum no casal. Eles se escondiam atrás de
pilastras e ficavam olhando a movimentação nas ruas antes de entrar em algum
lugar, como se fossem seguidos. Na retransmissora da TV, Edna afirmou ter um
dossiê contra a TV Globo. O programa Fantástico noticiara o desaparecimento de
Belchior em 2009 e a fuga do hotel uruguaio, em 2012. “Ela dizia que Belchior
era difamado pela Globo e queria justiça. Falou até que havia uma tentativa de
matá-lo”, diz a jornalista Vânia Lain, que recebeu os dois. Eles disseram que
voltariam na semana seguinte trazendo os documentos, mas desapareceram.
Em Porto
Alegre, Belchior e Edna ficaram inicialmente hospedados num hotel simples no
centro, pago com ajuda dos funcionários do Tribunal de Justiça, primeira porta
em que o casal bateu quando chegou à capital gaúcha. Depois, foram abrigados no
Centro Infanto juvenil Luiz Itamar, instituição de caridade na região
metropolitana. Dali, foram levados ao advogado Aramis Nacif, ex-desembargador
do Estado, que poderia ajudar Belchior com os processos. “Ele dizia que um
agente apareceria, mas nunca apareceu”, diz Nacif. Durante um mês, o casal
ficou abrigado na casa de praia do filho dele. “Eles não tinham dinheiro algum.
Edna apresentava um sentimento de perseguição muito grande, parecia ter algum
distúrbio psicológico”, diz. Foi nesse momento que Belchior conheceu o advogado
Jorge Cabral, na casa de quem se hospedou por quatro meses.
Cabral tomou
um susto ao perceber que um músico importante como Belchior estava ali. E os
convidou para ir a um sítio de sua propriedade, em Guaíba, local mais
agradável. Belchior e Edna continuavam sem dinheiro. Nesse período, o advogado
levou mantimentos, roupas, itens de higiene pessoal e até tintura para Belchior
pintar os bigodes de preto.
No sítio de
Cabral, Belchior não bebia nem comia carne vermelha. Passava os dias tomando
chá, caminhando e cuidando das ovelhas. Fazia muitas anotações em papéis, que
escondia numa pasta. Durante esse período, gastou duas canetas inteiras. Leu
cerca de 40 livros. Não apresentava sinais de depressão. Parecia, segundo
Cabral, alheio aos problemas que o cercavam. “Eu imaginava que ele era apenas
um compositor nordestino, mas encontrei um artista plástico, um pensador, um
filósofo”, diz Cabral. Ele pretende escrever um livro sobre a experiência.
Belchior só
não gostava de falar sobre sua situação. Recusava-se a tocar violão e cantar.
Edna impedia que ele fosse fotografado. O casal também não tomava nenhuma
providência para resolver os problemas jurídicos. “A gente esperava que a
situação se resolvesse, mas não acontecia nada. E aquilo não condizia com um
homem lúcido, com memória fantástica, que fala várias línguas e tem uma
quantidade enorme de músicas gravadas”, diz Jorge Cabral.
“Esse tempo
que ele falou que daria na carreira já está longo demais. Só queremos notícias
dele”, diz a irmã, Ângela Belchior. Belchior não apareceu nem no enterro da mãe,
que morreu em 2011. Por telefone, a ex-mulher Ângela soa reticente. Não gosta
de falar sobre um assunto tão delicado com a imprensa. Ela conta que, desde
2007, Belchior não entra em contato nem com os filhos. “Não entendo. Os
empresários dele não entendem”, diz.
Em julho
deste ano, Cabral pediu que o casal saísse, dado que Belchior e Edna não davam
sinal de acabar com aquela situação de total dependência. Ele os deixou na
porta da sede regional da União Brasileira de Compositores, com R$ 50 no bolso.
Na União, Belchior tentou desbloquear o pagamento de seus direitos autorais,
comprometido pelos processos na Justiça. Não conseguiu.
Belchior foi
visto pela última vez na entrada do prédio, um edifício moderno num bairro de
classe média de Porto Alegre, em frente a uma avenida bastante movimentada.
Carregava uma pequena mala nas mãos e material de pintura debaixo do braço.
Belchior – na belíssima letra de “Comentário a respeito de John”, ele cantava
“eu prefiro andar sozinho” – estava, como sempre, ao lado de Edna.
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