"Problemas
de escrita não podem ser controlados por lei", defende o linguista Sírio
Possenti em sua coluna de julho, referindo-se ao novo projeto de reforma que
tramita no Senado brasileiro com o fim de simplificar a ortografia. Leia o
artigo na íntegra.
O verdadeiro problema ortográfico
Em 'Ubaldo,
Fidel e o lápis', José de Souza Martins conta que João Ubaldo Ribeiro e ele
tinham um interesse comum: o uso popular de palavras 'novas', "que chegam
às pessoas comuns através da tevê, do rádio e da publicidade". Informa que
Ubaldo tinha uma 'besteiroteca', que incluía exemplos como "Parabéns
grassa você é muito espessial", "Deus potrêja esta casa",
"Vende-se filhote de lavrador", "Vende-se colchão
altopédico".
Primeira
observação: uma das coisas que mais me espantam é que intelectuais de alto
gabarito não tenham informações elementares sobre questões elementares de
linguagem, que estão em qualquer manual que um calouro de letras pode ler (em
verdadeiras faculdades de letras, não em colegiões).
Especialmente,
me espanta que cacem basicamente erros de grafia e que não manifestem a menor
capacidade de compreender o que se passa na cabeça de quem escreve errado. Só
riem. Se levassem em conta, por exemplo, a escrita antiga (do tempo de Camões,
digamos), imagino que sua avaliação mudaria completamente. Mas parece que nunca
viram nenhum desses documentos, que só conhecem as atualizações. No máximo,
lembram de 'farmácia' com 'ph'...
Claro que se
pode reagir humoristicamente aos exemplos citados (e a muitos semelhantes), que
podem ser vistos nas ruas e, hoje, no Google, digitando placas do meu Brasil.
Mas, além de provocar riso, esse material também pode ser visto como fonte de
dados de extrema relevância para uma descrição mais acurada da nossa língua.
Especialmente, já que a besteiroteca tem a ver basicamente com ortografia, uma
análise desses materiais poderia iluminar debates sobre o tema.
Nova reforma?
Mal se
implantam as regras do recente acordo ortográfico entre países lusófonos e já
surge um movimento para fazer outra reforma, que simplificaria a ortografia.
Ela seria mais uniforme (por exemplo, prescreve escrita uniforme para o fonema
/s/, que sempre seria grafado com a letra 's', o que resultaria em escritas
como 'sesta' para as atuais 'sexta' / 'cesta' / 'sesta'); e seriam eliminadas
algumas "contradições" ('estender' e 'extensão', por exemplo).
Erro ortográfico
Exame da
escrita popular e da produzida nos primeiros anos de escola revela vários tipos
de erros ortográficos. Por isso, a questão não pode ser resolvida apenas com
base na análise fonológica da língua.
Ora,
qualquer análise da escrita popular e da produzida nos primeiros anos de escola
mostra que os erros de grafia se dividem em diversos tipos: a) erros como
escrever 'casa' e 'exemplo' com 'z', 'caça' com 'ss', 'jeito' com 'g' etc.; b)
erros ligados a pronúncia variável ('mininu' (=menino), 'curuja' (=coruja),
'anzou' (=anzol), sem contar a famosa troca entre 'mal' e 'mau'; c) juntar
palavras separadas ('serhumano', com ou sem 'h') e separar palavras ('ante posto');
d) acrescentar ('apito' = apto) ou tirar ('habto' = hábito) letras; e) eliminar
ditongos ('vassora', 'otro', 'pexe') ou criá-los ('professoura', 'bandeija')
etc.
Ou seja:
uniformizar a grafia com base em análise fonológica não resolve o problema que
se pretende resolver, porque se parte de duas hipóteses sem nenhum fundamento:
a) que todos os falantes adotam a mesma pronúncia; b) que o único problema é a
relação letra/fonema. Ora, como os poucos exemplos mostram, os problemas são
mais numerosos e nenhuma reforma pode resolvê-los.
Saídas para uma escrita melhor
Os exemplos
de João Ubaldo revelam alguns aspectos mais complexos. Se 'espessial' assinala
um problema desses que qualquer um consegue mencionar, nem toca no problema que
surge na escrita de palavras menos conhecidas.
O exame de
casos mostra que uma das soluções do escrevente é associá-las a palavras
conhecidas, como no caso de 'altopédico', mais ou menos misteriosamente
associado a 'ortopédico', um provável exemplo de etimologia popular: sendo
'orto' uma forma desconhecida, é associado a 'alto', forma conhecida. Pela
mesma razão, escreve-se 'lavrador' por 'labrador'.
Mesmo uma
fonologia elementar, 'aplicada' à escrita, tem excelentes explicações para
grafias como 'malmita', 'agricula', 'chapiação', 'conzinheiro', 'viaigi',
'almusar' (para o 'u', no caso), 'afiace' (afia-se), 'dilícia', 'difisiu'
(difícil).
O que têm em
comum todos esses casos, citados em O português popular escrito, de Edith
Pimentel Pinto, é que não seriam atingidos por uma reforma que simplificasse a
ortografia, porque sua origem não é a grafia legal diversa para o mesmo fonema
nem uma pequena contradição local.
Leitura
Experiência
com leitura e escrita é a única saída para superar as dificuldades
ortográficas. Quem frequenta boa escola e escreve com regularidade geralmente
não apresenta problemas graves de grafia.
O que
origina essas grafias é uma hipótese elaborada por um escrevente com pouca
escolaridade e, consequentemente, com pouca familiaridade com a escrita. O que indica
a única saída para uma escrita melhor, desse ponto de vista: escola melhor e
maior contato com a escrita.
Quem tem
acesso a uma boa escola e escreve regularmente não tem problemas (graves, pelo
menos) de grafia. Nem no Brasil, nem na França ou Inglaterra, países em que se
falam línguas cuja escrita está bem longe da fala.
Se projetos
de reforma como o que tramita em Comissão do Senado forem levados adiante,
pouquíssimos problemas de escrita que se encontram na escola e nas ruas serão
solucionados. Simplesmente porque suas principais causas - a diversidade de
pronúncias e as hipóteses dos escreventes - não podem ser controladas por lei.
Se a solução
é óbvia, os caminhos para chegar a ela são conhecidos dos especialistas. Mas,
infelizmente, são completamente desconhecidos não só pela 'sociedade', mas
mesmo por representantes das letras de alto gabarito (e por senadores
supostamente menos iletrados), como o revela a besteiroteca mencionada
anteriormente.
Sírio Possenti
Departamento
de Linguística
Universidade
Estadual de Campinas
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